Romance XXI ou das Idéias





A vastidão desses campos. 
A alta muralha das serras. 
As lavras inchadas de ouro. 
Os diamantes entre as pedras. 
Negros, índios e mulatos. 
Almocrafes e gamelas. 

Os rios todos virados. 
Toda revirada, a terra. 
Capitães, governadores, 
padres intendentes, poetas. 
Carros, liteiras douradas, 
cavalos de crina aberta. 
A água a transbordar das fontes. 
Altares cheios de velas. 
Cavalhadas. Luminárias. 
Sinos, procissões, promessas. 
Anjos e santos nascendo 
em mãos de gangrena e lepra. 
Finas músicas broslando 
as alfaias das capelas. 
Todos os sonhos barrocos 
deslizando pelas pedras. 
Pátios de seixos. Escadas. 
Boticas. Pontes. Conversas. 
Gente que chega e que passa. 
E as idéias. 

Amplas casas. Longos muros. 
Vida de sombras inquietas. 
Pelos cantos da alcovas, 
histerias de donzelas. 
Lamparinas, oratórios, 
bálsamos, pílulas, rezas. 
Orgulhosos sobrenomes. 
Intrincada parentela. 
No batuque das mulatas, 
a prosápia degenera: 
pelas portas dos fidalgos, 
na lã das noites secretas, 
meninos recém-nascidos 
como mendigos esperam. 
Bastardias. Desavenças. 
Emboscadas pela treva. 
Sesmarias, salteadores. 
Emaranhadas invejas. 
O clero. A nobreza. O povo. 
E as idéias. 

E as mobílias de cabiúna. 
E as cortinas amarelas. 
Dom José. Dona Maria. 
Fogos. Mascaradas. Festas. 
Nascimentos. Batizados. 
Palavras que se interpretam 
nos discursos, nas saúdes . . . 
Visitas. Sermões de exéquias. 
Os estudantes que partem. 
Os doutores que regressam. 
(Em redor das grandes luzes, 
há sempre sombras perversas. 
Sinistros corvos espreitam 
pelas douradas janelas.) 
E há mocidade! E há prestígio. 
E as idéias. 

As esposas preguiçosas 
na rede embalando as sestas. 
Negras de peitos robustos 
que os claros meninos cevam. 
Arapongas, papagaios, 
passarinhos da floresta. 
Essa lassidão do tempo 
entre imbaúbas, quaresmas, 
cana, milho, bananeiras 
e a brisa que o riacho encrespa. 
Os rumores familiares 
que a lenta vida atravessam: 
elefantíase; partos; 
sarna; torceduras; quedas; 
sezões; picadas de cobras; 
sarampos e erisipelas . . . 
Candombeiros. Feiticeiros. 
Ungüentos. Emplastos. Ervas. 
Senzalas. Tronco. Chibata. 
Congos. Angolas. Benguelas. 
Ó imenso tumulto humano! 
E as idéias. 

Banquetes. Gamão. Notícias. 
Livros. Gazetas. Querelas. 
Alvarás. Decretos. Cartas. 
A Europa a ferver em guerras. 
Portugal todo de luto: 
triste Rainha o governa! 
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro! 
E sugestões indiscretas: 
Tão longe o trono se encontra! 
Quem no Brasil o tivera! 
Ah, se Dom José II 
põe a coroa na testa! 
Uns poucos de americanos, 
por umas praias desertas, 
já libertaram seu povo 
da prepotente Inglaterra! 
Washington. Jefferson. Franklin. 
(Palpita a noite, repleta 
de fantasmas, de presságios . . .) 
E as idéias. 

Doces invenções da Arcádia! 
Delicada primavera: 
pastoras, sonetos, liras, 
— entre as ameaças austeras 
de mais impostos e taxas 
que uns protelam e outros negam. 
Casamentos impossíveis. 
Calúnias. Sátiras. Essa 
paixão da mediocridade 
que na sombra se exaspera. 
E os versos de asas douradas, 
que amor trazem e amor levam . . . 
Anarda. Nise. Marília . . . 
As verdades e as quimeras. 
Outras leis, outras pessoas. 
Novo mundo que começa. 
Nova raça. Outro destino. 
Planos de melhores eras. 
E os inimigos atentos, 
que, de olhos sinistros, velam. 
E os aleives. E as denúncias. 
E as idéias. 


Poesia by Cecília Meireles
Foto by Mari Martins




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