Filosofando no Atemporal



TEORIA DA ALMA (PSICOLOGIA) E DA VIDA VIRTUOSA (ÉTICA) EM PLATÃO


A separação entre o sensível e o inteligível é metafísica (há dois mundos ou duas realidades diferentes) e é lógica (seus objetos são conhecidos de maneiras diferentes). Esta separação reaparece na teoria platônica da alma, psykhé.

Psykhé possui três sentidos principais:

· Vida ou princípio vital, o que anima um ser, o que lhe dá vida, e porque a vida é movimento ou mudança, psykhé é o princípio da autoatividade e da autoconservação de um ser; dá e conserva a vida. Neste sentido, todos os seres vivos (plantas, animais, astros ou seres celestes, os humanos) são dotados de psykhé,; o Kósmos é um ser vivo, animado pela Alma do Mundo.

· Consciência ou princípio da vida mental e espiritual. A psykhé ou alma é o princípio cognoscente ou o que, em nós, conhece e permite conhecer. Neste sentido, somente os homens são dotados de alma e a alma é diferente do corpo, sendo imaterial e princípio intelectual.

· A pessoa individualizada cujo espírito sobrevive após a morte. A psykhé é imortal, permanecendo após a morte do corpo. Neste sentido, a alma é o que "é semelhante ao divino" no homem, não só pela imortalidade, mas também pela racionalidade.

· Vida e atividade sensorial e motriz, consciência e atividade mental, imortalidade e racionalidade pessoal são os principais sentidos da psykhé. A alma humana possui uma origem supraterrestre e sua vocação ou destinação é o conhecimento da verdade e do bem, estando orientada para o divino, como seu fim (télos) ou finalidade. A alma, morada de Eros, deseja o divino e tende para ele; é nossa melhor parte e o corpo é para ela prisão, túmulo, risco de perdição nas coisas corporais que a afastam das coisas espirituais. Amar alguém ou alguma coisa é amar sua alma e não o envoltório grosseiro e mortal que é seu corpo. A alma ama as formas ou idéias. Ela deseja a formosura, diz Platão no Banquete, ama a perfeição.
 
No livro IV da República, Platão oferece a exposição mais completa de sua teoria da alma ou psicologia. Nossa alma, por suas relações com o corpo, não é uma unidade simples, mas é múltipla, conforme a função que realize. Seguindo a tradição médica, Platão irá situar cada função da alma numa região do corpo:
 
· A alma apetitiva ou concupiscente, que busca comidas, bebidas, sexo, prazeres, isto é, tudo o que é necessário para a conservação do corpo e para a geração de outros corpos; trata-se da faculdade apetitiva ou concupiscente, irracional, situada "entre o diafragma e o umbigo", ou no baixo-ventre. Esta alma ou faculdade termina com a morte do corpo, sendo, portanto, mortal; é nossa parte passional, sempre sequiosa e insatisfeita, sempre à procura de novos objetos de prazer.

· A alma colérica ou irascível, que se irrita contra tudo quanto possa ameaçar a segurança do corpo e da vida, tudo quanto cause dor e sofrimento; porque incita a combater perigos contra a vida, é a faculdade combativa, situada "acima do diafragma na cavidade do peito", isto é , no coração; também é mortal, pois existe para defender o corpo contra agressões á vida corporal e, como a alma concupiscente, é irracional.

· A alma racional, faculdade do conhecimento, parte espiritual e imortal, sede do pensamento e situada na cabeça; é a faculdade ativa e superior, o princípio divino em nós. Conhece o Bem e o Mal, a Verdade e as Idéias.

A relação entre a psicologia e a ética é exposta em dois diálogos: no livro IV da República e no Mito do Cocheiro, no Fedro.
Após apresentar, na República, a divisão da psykhé em dois princípios ou faculdades passionais, irracionais e mortais e um princípio ou faculdade ativo, racional e imortal, Platão indaga se é possível um homem ser virtuoso, isto e´, praticar o bem e as virtudes, se for comandado pela concupiscência ou pela cólera. Responde negativamente, uma vez que as paixões além de nos arrastarem para direções opostas, fazem com que os desejos e impulsos violentos de nosso corpo obscureçam nossa inteligência, impedindo-nos de conhecer e de exercer nossa atividade mais nobre, o conhecimento racional. E, como já dissera Sócrates, o vício é ignorância; portanto, quem não exerce a razão não conhece a virtude e não pode ser virtuoso. Assim sendo, a vida ética ou virtuosa dependerá exclusivamente da alma racional.
Qual a tarefa ética ou moral da alma racional? Dominar as outras duas faculdades, e harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a concupiscência é uma virtude e seu nome é temperança (sophrosýne) - a moderação. A alma temperante é aquela que não cede a todos os impulsos e prazeres, que modera seus apetites, impondo-lhes a media que lhe é oferecida pela razão. O domínio da razão sobre a alma irascível ou colérica é decisivo. De fato, a alma racional não age diretamente sobre a alma concupiscente, amas o faz por meio da alma colérica ou irascível. Por isso, sob o domínio da razão, a alma irascível saberá discernir o que é bom e mau para a vida de seu corpo, não só deixará de lançar-se indiscriminadamente a todo e qualquer combate que imagine importante para sua vida corporal (saberá quando e por que um combate deve ser travado e quando deve ser evitado), como ainda guiará a alma apetitiva ou concupiscente na escolha do que é bom para a vida. A virtude própria da alma irascível guiada pela razão é a coragem (thymós) ou prudência (phrónesis).
Finalmente, a alma racional será virtuosa se for mais forte e mais dominadora do que as outras duas, se não sucumbir aso apelos do apetite e da cólera, isto é, se não ceder aos apelos irracionais das paixões. Sua virtude própria é o conhecimento (nóesis, theoría).
Assim, um homem é virtuoso ou justo quando a alma racional domina a irascível e a faz corajosa, e quando a alma corajosa domina a concupiscente a faz temperante. A imoralidade, injustiça ou vício existem quando esta hierarquia de comandos não for obedecida.
No Fedro, essas idéias são retomadas no mito do cocheiro, cuja narrativa é suscitada pelo desacordo entre Sócrates e Fedro a propósito do discurso do sofista Lísias contra Eros. O desejo é louco e delirante, pontificara Lísias, acusando Eros pela desmedida das paixões e dos vícios.

Seria o delírio um mal? Indaga Sócrates. Existe apenas uma forma de delírio ou várias?

A loucura é delírio - em grego: manía. Ora, há delírios inspirados pelos deuses: o delírio profético, inspirado por Apolo Delfo, "que suplanta em perfeição e dignidade a arte humana dos augúrios"; o delírio purificador, inspirado por Dionisos, "que oferece remédios e refúgio contra o sofrimento"; o delírio poético, inspirado pelas musas, "que transporta a alma jovem e inocente a um mundo novo" oferecendo-lhe a dádiva da poesia; e há o delírio erótico, inspirado por Eros, "o deus alado", enviado pelos deuses "ao amante e ao amado, não para alguma utilidade material, mas para a felicidade de ambos", porque é o amor da sabedoria, a filosofia.
Pelos delírios, podemos conhecer a natureza da alma e, para compreendê-la, Platão recorre ao Mito do Cocheiro.
"A alma é como uma força ativa que unisse um carro puxado por uma parelha alada e conduzido por um cocheiro (...) pois, outrora, a alma possuía asas", assim inicia-se o mito.
Ser alado significa ter em si mesmo o princípio do movimento, isto é , da vida e por isso, alada, psykhé é imortal, pois é vida e causa de vida. Ser alado é participar da natureza imortal do divino, e a Natureza dotou as asas do poder de elevar o que é pesado rumo às alturas, onde habita o divino, que "é belo, sábio e bom", alimentando, desenvolvendo e fortalecendo os alados. Por isso a alma é atraída pelo delírio erótico: deseja alçar-se às alturas da verdade, porque somente ali encontra alimento para suas assas.

Qual a diferença entre a alma imortal dos deuses e a alma imortal dos homens:

"Os cavalos e cocheiros das almas divinas são bons e de boa raça. Os das almas humanas, mestiços. O cocheiro que os governa, conduz uma parelha na qual um dos cavalos é bom e de boa raça, enquanto o outro é de má raça e natureza contrária. Assim, conduzir o nosso carro é ofício difícil e penoso."

Qual a diferença entre a essência imortal dos deuses e a natureza mortal dos homens?

"Quando a alma é perfeita, governa a matéria inanimada, plana livre nos céus e dirige o Kósmos. Porém, quando perde as asas, rola pelos espaços infinitos até cair num sólido qualquer e aí pousar. Quando reveste a forma de um corpo terrestre, este começa mover-se, graças á força e vida que lhe comunica a alma. A este conjunto de alma e corpo damos o nome de mortal."
 
Somos mortais (embora a alma seja imortal) porque perdemos as asa. Como a perdemos? No afã de elevar-se, o carro alado é puxado para cima por um dos corcéis, mas puxado para baixo pelo outros. A luta da parelha força o cocheiro a olhar os cavalos e não a região celeste onde habitam a Beleza e a Verdade. A parelha se machuca, o cocheiro tem as mãos feridas pelas rédeas que puxam em direções contrárias, carros alados chocam-se com outros e as asas vão perdendo a força, caindo, até que o carro, pesado, caia sobre a terra, deixando no cocheiro apenas a nostalgia e a saudade do vôo, a vaga lembrança do que vira e o desejo insaciável de retornar aos céus. O cocheiro é a alma racional, o corcel que sobe, a alma valorosa da coragem, o que puxa o carro para baixo, a alma concupiscente que, pelo prazer, troca a Verdade pela Opinião.
Por que o cocheiro se recorda do vôo e porque um dos cavalos deseja subir, nem tudo está perdido. O delírio erótico - desejo de filosofia - pode fortalecer o amante - a alma racional - na busca do amado - a Beleza e a Verdade -, auxiliando-a a dominar o cavalo do apetite e dos prazeres para que não impeça o novo vôo.
O Mito do Cocheiro reúne, numa nova versão, O Mito da Caverna e O Mito de Er ou da Reminiscência, expondo com maior clareza a unidade entre conhecimento, psicologia e ética.
De fato, o cocheiro, como o prisioneiro da caverna, parte em busca da luz da verdade e, como no Mito de Er, realiza a viagem porque se lembra do que, uma vez, contemplou.
A força da razão sobre a cólera - fazendo surgir a moderação e a temperança - é a mesma na República e no Fedro. Neste, porém uma nova idéia articula mais profundamente ética e filosofia: a alegoria do delírio erótico ou o amor da Beleza, quando amante e amado fundem-se na felicidade perfeita. Lembrando-se, vagamente, da beleza outrora contemplada, o filósofo a reconhece nas coisas belas (isto é, elevando-se da multiplicidade sensível à unidade perfeita das idéias )e, dela se lembrando cada vez mais vivamente, seu espírito recupera as asas.
 
Por que a filosofia é delírio? Por que, à medida que aumenta em sabedoria e em virtude, o espírito do filósofo torna-se alado, mas, preso a um corpo (imagens e opiniões, apetites e paixões), não pode voar; por isso dirige o olhar para o alto, "esquecendo os negócios terrenos e dando a impressão de delirante".
Na República, a idéia de justiça (hierarquia de comando entre as almas) preside a exposição da psicologia e da ética. No Fedro , este lugar é ocupado pela idéia da beleza, sob o governo do desejo ou de Eros. A presença de Eros faz com que, no Fédon, Platão afirme que as três almas (ou três faculdades) são desejosas e desejantes.
A diferença entre elas encontra-se no objeto de seus desejos e no modo como desejam. A alma concupiscente deseja coisas perecíveis, que podem destruí-la sem que ela o perceba; e seu modo de desejar é o desejo de posse, imaginando que ficará saciada se possuir o objeto desejado, acabando, afinal, possuída por ele. A alma irascível deseja a fama, a honra e a glória, que também podem ser perecíveis e destruir a vida, se procuradas sem medida e sem conhecimento; seu modo de desejar é o desejo da boa opinião dos outros a nosso respeito, a alma irascível correndo o risco de, para obter a boa opinião alheia, perder seus próprios objetivos, caindo na infâmia, na desonra e na vangloria. A alma racional deseja o bem e a verdade, os bens imperecíveis; seu modo de desejar não é a posse (como na concupiscência) nem a busca da opinião alheia (como na cólera), mas é o desejo de participar da natureza ou da essência do objeto amado, as idéias, Por isso somente ela é capaz de oferecer e impor limites e medidas aos desejos das outras duas, tornando-as virtuosas. A moderação deve ser imposta aos desejos para que haja virtude e, agora, sophrosýne ocupe então o lugar que a Justiça tivera na República e a, Beleza, no Fedro.
 
Que significa dizer que todas as almas ou que todas as funções da alma são desejantes?

Significa:
 
· afirmar que Eros (o amor ou o desejo) é o motor das almas, da vida apetecente, da vida corajosa e da vida intelectual (a filosofia não é amor à sabedoria?);

· afirmar que a virtude depende da qualidade dos objetos com os quais desejamos nos unir por amor, uma escolha entre os objetos perecíveis da paixão e os imperecíveis da razão;

· afirmar que a liberdade ou a autarcia reside no poder da razão para afastar as paixões ou dominá-las, dando às faculdades apetitiva e irascível bons objetos de desejo, enquanto o vício e a servidão residem no poder das paixões sobre a razão.
 
Embora a psicologia e a ética recebam exposições diversas, em todas elas Platão estabelece urna relação precisa entre areté, dýnamis, epistéme e téchne. A areté, vimos, é a excelência ética, o "ser bom". os mitos platônicos evidenciam que a areté é uma dýnamis, uma possibilidade ou potencialidade da alma que precisa ser atualizada. A atualização é feita pela téchne como terapia e paideía. Estas pressupõem a ciência, a epistéme, que indica qual é a areté de cada função da alma - qual a excelência de cada uma delas - e qual a hierarquia entre essas funções. A téchne, isto é, a paideía dialética desfaz os conflitos entre as funções da psykhé (sua desordem), fazendo com que cada uma realize sua função própria.
Platão afirma que a alma racional é imortal. As provas da imortalidade da alma variam de diálogo para diálogo, à medida que a influência de Sócrates vai diminuindo e a dos pitagóricos órficos vai aumentando sobre sua filosofia. Por isso, na Apologia, a questão de saber se há uma vida após a morte e que tipo de vida será, fica em suspenso. Sócrates não parece muito empenhado em discutir o assunto. Ao contrário, nos diálogos da velhice, Platão discute em profundidade essa questão, aceitando a teoria órfico-pitagórica da reencarnação ou transmigração das almas e a da filosofia como purificação ou ascese espiritual para vencer a "roda dos nascimentos"

As principais provas da imortalidade da alma são oferecidas no Mênon, no Fédon, no Fedro, na República e nas Leis, podendo ser assim resumidas:

1) prova pela reminiscência: vimos que, tanto no Mênon quanto na República e no Fedro, a alma pode conhecer a verdade porque se recorda ou se lembra dela, e a reminiscência da verdade pressupõe que esta tenha sido contemplada numa outra vida;

2) prova Pela simplicidade: o que é composto por natureza tende a separar-se, as partes dividindo-se e distanciando-se, de sorte que o composto morre ou desaparece; ora, a alma racional é imaterial e simples como as idéia s e,, por sua simplicidade, não pode desfazer-se, separar-se, desaparecer ou morrer;

3) prova pela participação da alma na idéia de vida: a alma é o sopro vital, o princípio de vida de todas as Coisas e, portanto, não pode receber nem Participar do que é contrário à sua idéia ou à sua essência, isto é, a morte.

4) prova pelo princípio do movimento daquilo que move a si mesmo' aquilo que é movido por outro deixa de se mover quando a causa do movimento cessa; a alma não é movida por nada, mas move todas as coisas e move a si mesma; o que move a si mesmo é inengendrado e o que é inengendrado é imortal;

5) prova pela imutabilidade do incorpóreo: somente os corpos aumentam ou diminuem, mudam-se nos seus contrários e podem ser destruídos pela ação de outros corpos, mas o que é imaterial ou incorpóreo não aumenta nem diminui e nada há que possa destruí-lo de fora; a alma, sendo imaterial, não sofre transformações em sua essência e por isso permanece, sempre; sendo eterna, é imortal.
 
Aparentemente, as provas da imortalidade da alma estariam em contradição com a teoria da transmigração ou da reencarnação, pois esta pressupõe que a alma seja afetada pelos vícios do corpo, pelas paixões da concupiscência da cólera, não sendo portanto imutável nem simples e não podendo ser imortal. Na verdade, porém, o peso do corpo e das paixões sobre a alma, que leva Platão a dizer que o corpo é prisão da alma, não destrói sua imortalidade. A essência da alma não é transformada pelo corpo, mas prejudicada por ele, isto é, o corpo pode criar obstáculos para que a alma realize plenamente sua natureza e é por este motivo que está submetida à "roda dos nascimentos", destinada a libertar-se cada vez mais dos elementos corpóreos para, finalmente, não mais precisar nascer.

by Marilena Chauí
(Do Livro: Introdução à História da Filosofia - dos pré-socráticos Aristóteles, Editora Brasiliense, 1994, SP, pág. 21-219)
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Comentários

Anônimo disse…
Se ao dizer-mos que a alma é imortal e que em sua migração pelo cosmo, e que, em verdade esta migração é uma escola cosmica, de corpo em corpo, de planeta em planeta, de galaxia em galaxia, assim como umaa escola aqui na terra passamos de ano em ano até nos formarmos em alguma coisa, mas, mas aprendemos apenas uma fração de um todo de todas as materias. em vida aqui na terra, onde na vida e no dia a dia ainda sem que o percebamos, utilizamos mais o aprendizado de épocas anteriores ao nosso nascimento fisico no planeta do que o que aprendemos na escola comum, exemplo concreto: as vocaçoes,desenhar,compor,inventar o que ainda não existe, o cerebro humano é um supercomputador é suficiente ele buscar em seu arquivo cosmico, porque o maior cientista que já passou pela terra não seria nada, se todas as informaçoes que ele expos já não estivessem gravadas em seus arquivos, ninquem é mais inteligente ou menos inteligente que o outro, apenas possui mais ou menos informaçoes disponiveis arquivadas, a depender da época em que o seu cosmo conciencia foi gerado pelo cosmo universal.

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