Desmistificando o suicídio

Desmistificando o suicídio

*Por Diego F Tavares, Doris H. Moreno e Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo
Nas outras áreas da Medicina predominam queixas objetivas como “doutor, dói o meu joelho” ou “estou com dor de cabeça”. Porém, na Psiquiatria, estão presentes elementos subjetivos na história, que podem apresentar viés na identificação de sintomas. As queixas principais, frequentemente, são apenas “a ponta do iceberg” e, não raro, o paciente busca justificá-las por motivos externos. São exemplos dessa situação: “estou empurrando com a barriga minhas atividades porque não gosto mais do meu trabalho” e “não estou dormindo à noite porque estou preocupado com os problemas da minha empresa”.

O ser humano normalmente busca uma causa externa para justificar algo que o cérebro adoentado não consegue identificar de onde vem, porque propicia uma sensação de maior controle da situação. Entretanto, os distúrbios psíquicos comprometem o sistema de monitoramento capaz de identificar o próprio problema e reconhecer que há algo errado. O cérebro não reage a um quadro depressivo com pensamentos como: “tem uma área do cérebro que não está regulando corretamente o humor, devo buscar uma maneira de evitar estressores ou buscar ajuda médica, para voltar a funcionar normalmente”. Ao contrário disso, a tendência do indivíduo – e de muitos profissionais – é a busca por justificar aquela disfunção exclusivamente com base no ambiente e na vida da pessoa. Muitas vezes, nem ele, nem seus familiares desconfiavam que diversos aspectos presentes na história se tratava de algo “patológico”. O psiquiatra, portanto, precisa interrogar ativamente sobre a presença de todos os sintomas. Deve ajudar o doente a reconhecer manifestações decorrentes da desregulação de funções psíquicas cerebrais associadas a alterações no comportamento, pensamentos ou sentimentos.
O fato é que, na maioria das doenças psiquiátricas, aquele que sofre do problema (ou faz sofrer) não tem crítica do estado mórbido. Por exemplo, o cérebro do deprimido ignora os aspectos positivos da vida, perde a motivação, o ânimo e a vontade de fazer as coisas. Porém, explica os seus sintomas com base naquilo que ele acredita ser a “causa” para a depressão. Por outro lado, o cérebro ativado – como na mania – causa desinibição, irritabilidade, aceleração, impulsividade, grandiosidade e falta de autocrítica, a ponto de não perceber que está se prejudicando e levando o meio a reagir de maneira negativa.

Justificando o suicídio? 

Quando se fala de suicídio normalmente vêm à tona perguntas como: “por que ele fez isso?”, “o que estava tão ruim na vida dele que o motivou a tomar esta decisão?”, “como não pudemos perceber que ele estava sofrendo tanto?”, “mas tudo parecia tão bom na vida dele...”. Estas dúvidas surgem porque, na visão leiga, comportamentos suicidas são compreendidos como um fenômeno motivado apenas pelo ambiente e por questões socioculturais. Atualmente sabemos que, em mais de 95% dos casos de suicídios, as vítimas são pessoas biologicamente vulneráveis, portadoras de um transtorno psiquiátrico. O meio ambiente, em si, não é – e não poderia ser – necessário e/ou suficiente para levar qualquer pessoa a buscar o suicídio como única alternativa.

A maior parte das pessoas continua justificando doenças psiquiátricas por meio de hipóteses psicossociais, como se o suicídio acontecesse devido unicamente ao "estresse", "perda de emprego" ou "fim de relacionamentos". De fato, mesmo em situações em que tais estressores não estão presentes, em todos os lugares e classes sociais, existe risco de adoecimento psíquico. No caso do suicídio, várias são as possíveis causas tratáveis: a depressão unipolar, a depressão bipolar, transtornos ansiosos graves, estresse pós-traumático, esquizofrenia etc. O preconceito, a psicofobia e a desinformação impedem enxergar o suicídio como um problema médico psiquiátrico, limitando-o a causas compreensíveis das esferas psicológicas e socioculturais.

O que leva ao suicídio?

A visão moderna e cientificamente mais precisa sobre as causas do suicídio o descreve como um desbalanço no equilíbrio entre vários fatores estressores e mecanismos de resiliência. Eventos estressores são experiências que ameaçam a habilidade de o indivíduo se adaptar ao meio ambiente. Já os mecanismos de resiliência tornam-no capaz de se adaptar ao estressor e regular sua resposta diante dele. Assim, postula-se que algumas pessoas apresentem fatores individuais de vulnerabilidade e resiliência, que abalam o equilíbrio representado no quadro abaixo.

Os fatores estressores podem ainda influenciar uns aos outros, ou seja, impactando indiretamente o resultado final. Por exemplo, o Transtorno Bipolar (TB) é um importante fator de risco para o suicídio. Contudo, se bem tratado, tal risco diminui de forma significativa. Da mesma forma, fatores que dificultam o controle do TB – como rotinas estressantes, privação de sono, antidepressivos mal indicados, álcool, drogas ativadoras (ecstasy, cocaína, LSD, anfetaminas etc) podem aumentar o risco de suicídio nesses grupos, como desfecho final.

Alguns fatores de risco foram associados ao suicídio, levando a um aumento da carga estressora e diminuição da resiliência. Estão elencados no quadro ao lado.
Diante do exposto, o suicídio deve ser considerado como fenômeno complexo e multicausal. Não é correto buscar justificativas que seriam necessárias e/ou suficientes para o suicídio. Por exemplo, um indivíduo com uma maior carga de estressores pode não correr tanto risco de suicídio quanto um indivíduo com TB que apresenta menos estressores psicossociais. Já indivíduos com TB que apresentam esses mesmos estressores, podem ter seu risco multiplicado.

Assim, somente perguntando diretamente ao paciente, investigando todos os possíveis fatores de risco e desmistificando esse assunto, tiraremos a culpa de cima dele e seus familiares. O suicídio deve ser visto como patológico, para que as medidas preventivas e assistenciais corretas possam ser tomadas. Somente assim não seremos mais surpreendidos com horríveis notícias de morte por suicídio de médicos, alunos e de outros profissionais, que nunca imaginamos sequer estarem doentes.

Fatores associados ao comportamento suicida

Fatores sociodemográficos:
• Estado civil: solteiro, viúvo, separado
• Orientação sexual: homo ou bissexuais
• Ocupação: desempregados, aposentados, profissões específicas (médicos, dentistas)
• Moradores de áreas urbanas ou migrantes
• Perda de ente querido 
(especialmente perda recente)
• Presença de Transtorno Psiquiátrico:
• Transtornos de humor
• Transtornos psicóticos (especialmente esquizofrenia)
• Transtornos de personalidade
• Transtornos relacionados ao uso de substâncias
• Transtornos de ansiedade
• Transtornos mentais orgânicos e outros
Fatores familiares:
• Antecedente familiar de transtorno psiquiátrico
• Antecedente familiar de transtorno de suicídio
• Ambiente familiar disfuncional
• Abusos na infância
• Isolamento social
Fatores clínicos gerais:
• Doenças crônicas
• Câncer
• Lesões medulares
• Lesões desfigurantes
Outros fatores:
• Tentativa de suicídio prévia: é o fator preditivo isolado mais importante
• Impulsividade, agressividade, labilidade emocional
• Problemas legais e/ou financeiros


*Doris Hupfeld Moreno é médica psiquiatra, mestre-doutora em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da USP; coordenadora do Ambulatório Integrado de Bipolares (AIBIP) do Programa de Transtornos Afetivos (Gruda) do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (IPQ-HCFMUSP)

Diego Freitas Tavares é médico psiquiatra, doutorando em Medicina pelo Departamento de Psiquiatra da USP, coordenador do Ambulatório Integrado de Bipolares (AIBIP) do Programa de Transtornos Afetivos (Gruda) do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (IPq-HCFMUSP), e coordenador do Programa de Transtorno Afetivo Bipolar (Protab) da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC)

Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo é médico psiquiatra e conselheiro coordenador da Assessoria de Comunicação do Cremesp
Referências
Keaton SA, Madaj ZB, Heilman P, Smart L, Grit J, Gibbons R, et al. An inflammatory profile linked to increased suicide risk. J Affect  Disord. 2019 Mar 15;247:57-65. doi: 10.1016/j.jad.2018.12.100. Epub 2019 Jan 3.
 
Horowitz LM, Roaten K, Pao M, Bridge JA. Suicide prevention in medical settings: The case for universal screening. Gen Hosp Psychiatry. 2018 Dec 1;pii:S0163-8343(18)30110-5. doi: 10.1016/j.genhosppsych.2018.11.009.
 
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Perrfil epidemiológico das tentativas e óbitos por suicídio no Brasil e a rede de atenção à saúde. Boletim
Epidemiológico.
 (Brasília, DF). 2017;48(30). 
. Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/2017-025-Perfil-epidemiologico-das-tentativas-e-obitos-por-suicidio-no-Brasil-e-a-rede-de-aten--ao-a-sa--de.pdf
 
Associação Brasileira de Psiquiatria. Suicídio: informando para prevenir. Conselho Federal de Medicina Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina; 2014. 
. Disponível em: http://www.flip3d.com.br/web/pub/cfm/index9/?numero=14
 
Brasil. Ministério da Saúde. Prevenção do suicídio: manual dirigido a profissionais das equipes de saúde mental. Brasília, DF: 
; 2006. 76 p. 
. Disponível em: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1241.pdf
 
 Naghavi M, Wang H, Lozano R, Davis A, Liang X, Zhou M, et al. Global, regional, and national age-sex specific all-cause and cause-specific mortality for 240 causes of death, 1990-2013: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2013. GBD 2013 Mortality and Causes of Death Collaborators. Lancet. 2015 Jan 10;385(9963):117-71. doi: 10.1016/S0140-6736(14)61682-2. Epub 2014 Dec 18.
 
Nordentoft M, Mortensen PB, Pedersen CB. Absolute risk of suicide after first hospital contact in mental disorder. Arch Gen Psychiatry. 2011 Oct;68(10):1058-64. doi: 10.1001/archgenpsychiatry.2011.113
.
Fonte: Revista Ser Médico nº 86

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