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Mostrando postagens com o rótulo Crônicas

A odisseia de Homer.

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Antonio Prata* A odisseia de Homer   S emana passada, tomei um susto. Sentado em minha poltrona, com uma caneca de cerveja numa mão e o controle remoto na outra, descobri que havia me transformado num marido. Nunca pensei que isso fosse me acontecer. Antes de mais nada, é preciso que o leitor entenda – e a leitora, mais ainda – que o fato de um homem se casar não o torna imediatamente um marido, assim como o fato de uma pessoa ouvir hip hop não faz dela um rapper. Para ser marido, como para ser rapper, é preciso ter certa atitude e certa indumentária. A condição marital requer, entre outras coisas, a existência de uma poltrona, de uma caneca, de um controle remoto e de uma relação afetiva levemente neurótica com tais objetos. Eu tenho. Ainda bem que descobri a tempo. Antes, pelo menos, de deixar crescer o bigode e começar a ir ao supermercado de moletom e tênis de corrida. Eu deveria ter desconfiado que havia alguma coisa errada meses atrás, durante a cerimônia de casa

Pecados do Chico

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Pecados do Chico   Sady Ribeiro* A ndo pensativo, confuso e preocupado... Tudo porque agora tenho um cachorro chamado Chico. Necessidade de um homem que está ficando velho e precisa de um amor incondicional, que só cachorros são capazes de dar. Mas por que então esse estado mental? Vou explicar. Primeiro foi o Dalai Lama, cuja entrevista assisti em um documentário. Ele disse com palavras bem claras: “um cachorro, dependendo do seu comportamento, pode voltar numa próxima vida como um humano ou como outro animal inferior na escala biológica. Humanos correm o mesmo risco”. Naquela noite tive um pesadelo. Chico voltaria como um rato e eu como um gato malvado. No dia seguinte, acordei com dores no estômago e gosto de carne na boca… Nem pude trabalhar. Quando estava melhorando, veio o nosso querido argentino – esse que nós brasileiros gostamos com a mesma intensidade com que o odiamos, Maradona – dizendo que um bom cão pode ir para o céu. Imagino, então, que um mau cão poderia ir

O sujeito detestável

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O sujeito detestável O  sujeito detestável encostou seu enorme jipe de guerra, construído para desbravar dunas e abrir trilhas no mato, na traseira do meu carro e começou a buzinar. Não entendi o que ele queria. O sinal estava fechado. Ele começou a gritar que eu era uma “bicha velha”, e eu fiquei sem entender, porque, além de eu não ser bicha nem velha, adoro bichas e velhas e não entendi por que é que ele odeia bichas e velhas a ponto de achar que isso vai ofender alguém. Como o “bicha velha” não surtiu o efeito desejado, ele disse que eu estava cometendo uma falta de civilidade. “Do que você está falando?” Ele falou que o espaço que havia entre o meu carro e o carro da frente era enorme. Olhei para a frente. Três metros me separavam de um caminhão. Achei uma distância segura e razoável. O sujeito detestável berrou que a mãe dele estava doente, gritou que eu era uma “vedete” (sic) que me achava melhor do que os outros, mas eu não consegui entender qual era a relação disso

Meu irmão, o robô

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© PEDRO FRANZ São Paulo, 2052 Por ser feito de um material ligeiramente orgânico que lhe conferia forma próxima à nossa, revestindo a secura de finas camadas de silício, foi chamado de biociborgue. Se fosse pelo meu pai, cientista premiado, não o teríamos comprado. Meu velho sempre defendeu um extenso pessimismo em torno do mundo das máquinas e, mais ainda, dos ambientes e objetos sencientes que trouxeram fortes mudanças à cultura. Cultura aquela que muitos, apressadamente, relutavam em denominar, ainda, de “humana”. A respeito do biociborgue, meu pai me advertia: “Convém não chamá-lo por um nome, filho. Convém precaver-se. Trata-se de qualquer outra coisa que não um irmão”. Sobre a caixa metálica em que recebi o produto, dois anos atrás, lembro-me de ter lido o nome “Arthur”. Coisa encantadora foi aquilo: acionado por voz, o garoto de minha idade assentou-se e me passou, em cerca de dez minutos, todas as informações que eu poderia desejar sobre seu funcionamento. Era um

Sono de criança

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Sono de criança Q ando criança, errar é poesia. Quando adulto, errar é malandragem. Não deveria ter crescido. Porque cresci sem mudar. As pessoas é que mudaram seu olhar sobre meu temperamento. Não sou perdoado por falhas, lapsos, gafes. Antes era engraçado, hoje sou irresponsável. Antes era distraído, hoje sou preguiçoso. Antes era charmoso, hoje sou idiota. Você não tem ideia do esforço que faço todo dia para ser adulto. Tomo café de propósito, e não Nescau, que adoro, para não me entregar. Nos anos 80, ainda em meus dez anos, recebia a tarefa de comprar coisas que faltavam para o jantar no armazém. Não anotava o que minha mãe queria. Buscava memorizar, e me atrapalhava. Não foram poucas as vezes em que ela solicitava pêssego e pegava abacaxi, ela esperava por mostarda e trazia catchup, ela aguardava por salsinha e surgia com alface. As palavras formam vizinhanças estranhas em minha cabeça. Num finzinho de tarde, parei novamente n

Crônica sobre a Copa do Mundo

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E a Selminha estava lá N ão sei bem como aconteceu, mas o fato é que fui convocado para integrar a seleção brasileira de futebol, quando a Copa já tinha começado, em 1950. Flávio Costa, então técnico, assustou-se com o empate com a Suíça, em São Paulo. Havia uma crise interna, para não dizer ciúme, entre cariocas, paulistas e a turma do Vasco, formada por nove dos 22 jogadores. Alguém tinha me visto jogar – acho que foi o Ari Barroso – pelo Tupi de Juiz de Fora, quando marquei 19 gols no segundo tempo de uma partida do campeonato mineiro. Sopraram ao ouvido do homem: – Convoque o mineirinho, só para assustar essas estrelas, e elas vão jogar o futebol que sabem. Cheguei meio assustado, desconfiado… Poucos falavam comigo. Na verdade, só o Castilho, reserva do Barbosa. Talvez porque lhe dissera que era torcedor fanático do Fluminense. Eu participava do aquecimento físico, entrava nos últimos minutos dos treinos, ajudava o massagista, carregava as camisas... E, co

O sentido da vida

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E stá claro neste estágio do desenvolvimento da humanidade que não há, nunca houve nem haverá programa melhor do que ter as costas coçadas pelas habilidosas mãos da mulher amada. Eis o sentido da vida, a razão pela qual não jogamos a toalha e seguimos trabalhando, nos chacoalhando pelo trânsito e comendo o pão que o diabo amassou. Quando estamos deitados, sujeitos às maravilhosas sensações causadas pelo ir e vir daqueles dedos sobre as nossas costas, nos lembramos: Ahhhh, então é por isso que eu vivo! Essa a razão de me alimentar, respirar, vestir-me todos os dias, ter bons modos e respeitar as leis (todas elas: as sociais, constitucionais, físicas e metafísicas). O que somos nós no universo? Nada! Somos um brevíssimo acidente; um choque de matéria: “sistema físico-químico de células noturnamente conscientes”; um detalhe ínfimo e insignificante que perambula e tagarela por uma bolinha azul, também ela um detalhe, ínfimo e insignificante, que gira ao redor de uma esfera de fog

Segundo clichê

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E xistem algumas formas para evitar as discussões inerentes numa relação. Dividir tarefas é uma. Exemplo: se estão num apartamento, ela pega o jornal no hall, ele, o  delivery  na portaria. Outro? Ela passeia com o cachorro de dia, ele, à noite. Ela o leva à tosa e banho, ele, ao veterinário. Ela dá a ração, ele limpa os excrementos. Com a repetição e o consenso, acomodam os conflitos e aumentam as chances de ser estabelecida a paz. Mas o que realmente ajuda uma relação é a alternância de quem escolhe o que fazer aos sábados. Sábado à tarde Comida costuma causar muita polêmica, pois ele prefere sempre os mesmos restaurantes, e ela, o novo, restaurantes étnicos que saem nos guias, recomendados por críticos gastronômicos e colunas sociais. Prático, ele gosta de rodízio. Especialmente de churrascarias. De dia ou de noite, não faz diferença: pede farofa com ovo e bacon. Gosta também de cantinas italianas tradicionais, daquelas com massas grossas e fartura de m

Da Olivetti ao Tablet

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Em 1985, quando conquistei o meu primeiro emprego, só haviam máquinas de escrever e lá fui eu fazer um curso de Datilografia no Senac. Antigamente as exigências eram muito menores, não havia essa tal Globalização, eram apenas dedos operando teclas duras e barulhentas de uma máquina de escrever e, ao errar algo, usava-se uma pequena fita corretiva. Éramos, apenas eu, a Olivetti, os "muitos" papéis, os arquivos e um telefone na mesa. Era assim que se trabalhava... Hoje, são tantos softwares, tantos sistemas operacionais, tantos computadores, tantos iPhones, Smartphones e iPads. Hoje, tudo é Wirelles, Wi-Fi. Hoje, não se escreve mais carta, se manda torpedo, se fala pelo MSN, se fala pelo Skype e se manda um e-mail. A Internet veio para revolucionar. Lembro-me da Mandic revolucinando as coisas em 1990 com um computador 286, lembro-me da IBM com seu OS/2 e da Microsoft apostando tudo no Windows, lembro-me do DOS. Lembro-me do Brasil engatinhando na entrada da Inte