Meu irmão, o robô

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© PEDRO FRANZ
São Paulo, 2052
Por ser feito de um material ligeiramente orgânico que lhe conferia forma próxima à nossa, revestindo a secura de finas camadas de silício, foi chamado de biociborgue. Se fosse pelo meu pai, cientista premiado, não o teríamos comprado. Meu velho sempre defendeu um extenso pessimismo em torno do mundo das máquinas e, mais ainda, dos ambientes e objetos sencientes que trouxeram fortes mudanças à cultura. Cultura aquela que muitos, apressadamente, relutavam em denominar, ainda, de “humana”. A respeito do biociborgue, meu pai me advertia: “Convém não chamá-lo por um nome, filho. Convém precaver-se. Trata-se de qualquer outra coisa que não um irmão”.
Sobre a caixa metálica em que recebi o produto, dois anos atrás, lembro-me de ter lido o nome “Arthur”. Coisa encantadora foi aquilo: acionado por voz, o garoto de minha idade assentou-se e me passou, em cerca de dez minutos, todas as informações que eu poderia desejar sobre seu funcionamento. Era um ser multifuncional: conseguia até mesmo prever o tempo, tanto o tempo interior dos homens quanto o das massas de ar e intempéries.
“Arthur” era homenagem a um reles robozinho que distraiu as crianças ingênuas dos anos 1980. Porém aquele nome sofreria os solavancos de meu recalque: não seria jamais pronunciado. Em vez disso, eu o chamaria simplesmente “robô”, termo genérico da ordem do desprezo que remetia a uma criação ultrapassada. Por isso, sadicamente eu o chamava “robô” daqui, “robô” dali, como um dono que não amasse o próprio cachorro e, por isso, apenas gritasse: “cão! cão!”.
O biociborgue comprado para me fazer companhia parecia não se importar com o fato de eu não lhe atribuir um nome próprio.
Parecia.
Ele me acompanhava como um discreto segurança, estivesse eu no colégio, em algum parque ou em bares com meus colegas. E permanecia em mudez até que eu o autorizasse a falar. Era motivo de galhofas que eu mesmo criava junto aos meus amigos. Contudo, por ser um biociborgue, não teria sentimentos e poderia servir de saco de pancadas no qual eu extravasava raivas e injúrias. Junto a isso, a voz de meu pai ressoava: “Não confie nessa coisa que você comprou. Chegará o dia em que as máquinas se rebelarão. Lembre-se dos filmes, rapaz”.
Todo biociborgue era muito questionado pela ciência: por um lado, possuía sutis atributos conferidos pela tecnologia da inteligência artificial. Parecia sentir, parecia querer, parecia ponderar, parecia entreter-se, parecia até amar. Mas não fazia mais do que semblant, como afirmava um velho psicanalista que morava no iglu abaixo do nosso. Todos os dias pela manhã, Miguelito abria a porta e chacoalhava o pó que se amontoava nos cabelos de sua secretária humanoide. Depois, olhava em direção à minha janela com um risinho enigmático.
Um dia, ele me contou que a chegada dos biociborgues na vida cotidiana das pessoas trouxe uma nova onda de histeria, pior do que a do final do século XIX. Porém uma de suas polêmicas aparições na TV causou a ruína de seu prestígio intelectual: foi no exato dia em que declarou que até uma torradeira e um aspirador de pó iriam precisar de analistas. Desde então, caiu em descrédito no mundo acadêmico, mas continuou a ser mais e mais procurado como psicanalista. E não apenas por pessoas, mas por outros sujeitos. Não era raro ver um biociborgue apertar a campainha e entrar furtivamente em seu gabinete vinho e art déco, e sair meia hora depois com o rosto menos angustiado.
— Tenho um problema, robô – eu disse um dia ao meu pajem.
O biociborgue olhou-me em profundidade. Suas pupilas se dilataram e ele pareceu ler algo que ia dentro de mim.
— Você quer conversar, meu irmão?
— Não me chame de irmão. Já mandei parar com isso. Nunca vai aprender? Heim?
Como consequência daquele que era apenas mais um dos acessos de raiva que eu sempre tinha contra ele, tranquei-o no armário e apaguei a luz do quarto, saindo para fora do iglu para tentar ver alguma estrela acima dos amontoados metálicos.
No dia seguinte, ordenei que ele caminhasse comigo pelo Ibirapuera monitorando minha perda real de calorias.
— Você se importa de falar alguma coisa, robô? Cansa-me andar em linha reta ao lado de uma coisa inútil como você que, ainda por cima, não diz nada. É pedir muito?
Apertei o passo. Ele me perguntou se eu ficaria satisfeito com a narrativa de algum conto ou com a atualização das notícias do dia.
— Eu queria, robô, é que você pelo menos fingisse entender um pouco além do que decidiram chamar de “inteligência artificial”.
Parei abruptamente, mais irritado, e dei-lhe soquinhos em seu peito.
— Sei que aí dentro não tem muita coisa. São só ligações neuronais invisíveis, sangue de mentira, uma série de comandos para simularem o envelhecimento do corpo… Quantos anos você tem? Dezesseis?
— Eu fui programado para envelhecer com você, Gabriel. Quando o pedido da compra chegou à fábrica, colocaram em mim o código da mortalidade. Vou deixar de existir algum dia.
— Não me interessa. Você vai ultrapassar meus cento e vinte anos, isso já sei. Conheço biociborgues que estão programados para chegar aos duzentos. Meu pai me conta tudo.
— Gabriel, às vezes eu me sinto confuso. O que quer que eu faça? É como se eu não conseguisse agradá-lo como deveria.
Decidi me assentar e ele fez o mesmo.
— Olha, robô… Não quero uma parafernália ambulante com sentimento de culpa ou de incapacidade atrás de mim.
— E como eu poderia demonstrar melhor meu afeto e dedicação, Gabriel?
— Não seja tolo. Você foi feito para me servir, mas tem várias imperfeições. Como pode? Veja só… – e toquei-lhe uma orelha. – Este lóbulo esquerdo… vê-se claramente que por trás tem uma entrada USB. Não poderia ter sido produzido com mais esmero?
— Eu lhe peço desculpas, Gabriel, por minha concepção tão obsoleta.
Pus-me de pé e de chofre contei-lhe o que guardava só para mim:
— A verdade, seu monte de areia e carne, é que você estava em liquidação. Liquidação, sabia?
Vi naquele instante os olhos de meu robô ficarem cinzentos como as nuvens que nos cobriam. Sobre o Ibirapuera, formou-se uma tempestade que não estava na previsão do tempo de meu servo falho.
— Você não analisou o clima devidamente hoje.
— Desculpe-me – disse-me, tentando amenizar o semblante triste. – Mas… posso lhe perguntar uma vez mais o que mais posso fazer por você?
— Bastaria que você fosse gente. É duro andar o tempo todo com um biociborgue de promoção que não sabe nem preparar champignons com ovos sem errar no sal.
— Só posso lhe dizer que lamento muito, Gabriel.
— Você nem deveria ter sido criado, sabia? – encolerizei-me. – Acho que nem Miguelito conseguiria aumentar sua autoestima… Aliás, de “auto” você só deve ter “automação” inscrita aí, nesses seus códigos fajutos. Bem dentro desse peito oco, sabia?
Pus-me a andar rápido para fugir da borrasca que cairia em breve.
Mas o robô vinha atrás, em passos deselegantes, insistindo:
— O que mais posso fazer por você, Gabriel? O que você quer? O que você deseja?
Cansei-me daquilo. Virei-me para ele e fiz um pedido impossível.
— O que desejo? – bufei. – Desejo seu coração. Quem sabe você não me dá o coração de grão de arroz que existe por trás desse exoesqueleto almofadado?
E tornei a caminhar em direção ao portão
de saída.

Entretanto, uma única vez o robô ousou tocar-
me sem permissão. E foi aquela. Tomou-me pelo braço e disse:

— Quero que você seja feliz. E que goste mais de mim, Gabriel.
Então, estupefato – como ainda estou agora –, vi o robô enfiar a mão esquerda dentro do próprio peito, atravessar a parede de carne e metal, e trazer para fora, vivo e pulsante, um coração. Indubitavelmente humano.
Em pânico, segurei o órgão que me fora presenteado e que ainda batia, mesmo desconectado do corpo biociborgue. Desesperado, vi o robô cair por terra com um sorriso sereno de dever cumprido.
Meu irmão, Arthur, estava morto.
Adriano Messias de Oliveira é doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP. É também autor de mais de 50 livros de ficção.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp




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