A era humana
No final de abril, um grupo internacional formado por geólogos, arqueólogos, geoquímicos, oceanógrafos e paleontólogos participou de um encontro em Oslo, na Noruega. O objetivo inicial da reunião, que fez sentar à mesma mesa pesquisadores de áreas tão distintas, era consolidar uma proposta a ser apresentada em agosto na África do Sul para marcar o início do processo de reconhecimento oficial de que a Terra vive uma nova época geológica: o Antropoceno, a era dos seres humanos.
Após dois dias de discussão, porém, o grupo decidiu adiar para 2018 a proposta de formalização do Antropoceno. Até lá, devem ser reunidas mais evidências de que as transformações ambientais provocadas pela ação humana são tão intensas que já produziram marcas indeléveis no registro geológico do planeta. “Queremos apresentar uma proposta suficientemente robusta para que a comunidade científica internacional não tenha dúvidas sobre a formalização do Antropoceno”, conta a oceanógrafa Juliana Ivar do Sul, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul, que participou do encontro.
Segundo o grupo que esteve na Noruega, dos anos 1950 para cá, as atividades humanas teriam causado alterações nos processos geológicos da Terra – modificando o ritmo de desgaste de rochas e acúmulo de sedimentos desde a superfície dos continentes até o fundo dos oceanos – muito mais intensas do que as que ocorrem naturalmente. Uma característica marcante desse novo estágio na história da Terra seria a presença cada vez mais abundante de um sedimento artificial, formado por lama e areia misturadas com grãos de materiais sintéticos, em especial o plástico, vindos do lixo produzido pelo ser humano.
“Propor uma nova época geológica é algo muito complexo”, afirma Juliana. “Precisamos das mais diversas evidências científicas e o efeito do plástico nos processos geológicos é só uma delas”, conta a pesquisadora. Especialista na investigação dos efeitos da poluição dos oceanos pelo plástico, Juliana integra o Grupo de Trabalho do Antropoceno, coordenado pelo paleontólogo Jan Zalasiewicz, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, e pelo geólogo Colin Waters, do Serviço Geológico Britânico. O grupo foi criado em 2009 pela União Internacional de Ciências Geológicas (Iugs, na sigla em inglês), que define a tabela cronoestratigráfica internacional.
Essa tabela organiza as camadas de rochas que formam os continentes e o fundo dos oceanos seguindo a ordem cronológica em que elas surgiram – as camadas mais antigas aparecem na parte inferior da tabela. As convenções definidas nessa tabela permitem aos geólogos comparar sedimentos e rochas de locais diferentes e determinar suas idades relativas quando não há datação direta, reconstituindo, assim, a história da Terra.
De acordo com a tabela, a época atual é o Holoceno, que começou há 11.700 anos. O início do Holoceno foi definido oficialmente apenas em 2008, quando um grupo de trabalho revisou as evidências científicas de que as camadas de rocha, sedimento e gelo com cerca de 11.700 anos de idade apresentavam marcas deixadas pelas mudanças climáticas que ocorreram no fim da última era glacial do planeta.
A ideia de que o Holoceno teria chegado ao fim com mudanças ambientais provocadas pela civilização moderna, dando início ao Antropoceno, tornou-se conhecida no início da década passada por meio de artigos e conferências do holandês Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1995 por seus trabalhos sobre a formação do buraco na camada de ozônio da atmosfera. As ideias de Crutzen inspiraram Zalasiewicz a propor à Iugs um grupo de trabalho para debater o assunto e tentar definir o início do Antropoceno e as suas características.
Embora as conclusões do grupo só devam ser sumarizadas e apresentadas em 2018, as principais evidências levantadas por ele vêm sendo divulgadas e discutidas há algum tempo. O trabalho mais recente a defender o Antropoceno é um artigo de revisão escrito por Waters, Zalasiewicz e mais 22 colaboradores e publicado em janeiro naScience. No paper, os pesquisadores defendem que as atividades humanas já mudaram o planeta a ponto de produzirem em todo o globo sedimentos e gelo com características distintas daqueles formados no restante do Holoceno.
Segundo essa revisão, as camadas de gelo e sedimento depositadas recentemente contêm fragmentos de materiais artificiais produzidos em abundância nos últimos 50 anos: concreto, alumínio puro e plástico, além de traços de pesticidas e outros compostos químicos sintéticos. Mesmo em lugares remotos do planeta, como a Groenlândia, os sedimentos acumulados de 1950 para cá apresentam concentrações de carbono, resultado da queima de combustíveis fósseis, e de fósforo e nitrogênio, usados como fertilizantes na agricultura, muito mais elevadas do que nos últimos 11.700 anos.
Waters, Zalasiewicz e seus colegas estimam ainda que o impacto das atividades humanas atuais pode permanecer registrado por dezenas de milhões de anos. A mineração, as mudanças no clima global e o aumento na taxa de extinção de espécies de plantas e animais também devem deixar suas marcas nas rochas. “O artigo causou muita polêmica”, lembra Juliana. “Muitos pesquisadores discordam de que o Holoceno tenha chegado ao fim e essa discussão ainda deve durar alguns anos.”
Entre os críticos da proposta está o geólogo Stanley Finney, da Universidade do Estado da Califórnia em Long Beach, Estados Unidos. Ele é diretor do conselho executivo da Iugs que define a tabela cronoestratigráfica e, ao lado de Lucy Edwards, do United States Geological Survey, discordou da ideia de criação do Antropoceno em um artigo de opinião publicado na edição de março/abril do boletim GSA Today, da Associação Geológica Americana. No texto, Finney e Lucy afirmam que muitas das camadas depositadas nos últimos 70 anos nas porções mais profundas do oceano não têm mais de 1 milímetro (mm) de espessura. Eles dizem ainda que a maioria das evidências apresentadas pelos defensores do Antropoceno se baseia em previsões sobre o potencial registro em rochas de um futuro remoto. A inclusão do Antropoceno na tabela cronoestratigráfica teria uma razão mais política (denunciar o impacto ambiental da humanidade) do que científica.
“Para se definir uma nova época é necessário que o material depositado tenha expressão na coluna de sedimento em muitos lugares do planeta e em ambientes diversos”, explica o geólogo Michel Mahiques, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP). “Não sabemos até que ponto o Antropoceno atende à Iugs nesse pressuposto, uma vez que a época já pode ter expressão em alguns ambientes, como as regiões costeiras, e quase nenhuma expressão em outros, como o fundo das bacias oceânicas.”
Juliana lembra que não há consenso nem entre os que apoiam a oficialização do Antropoceno. O grupo de Zalasie-wicz, por exemplo, defende um dia para o início dessa nova época: 16 de julho de 1945, o dia em que foi detonada a primeira bomba atômica, em Alamogordo, no estado norte-americano do Novo México. A data marca o início de uma contaminação da atmosfera por isótopos radioativos liberados em testes de armas termonucleares que já teriam tido tempo para se incorporar ao gelo e ao sedimento de toda a superfície do planeta, deixando um sinal claro para os geólogos do futuro. Outros pesquisadores sugerem, porém, datas mais remotas, como o início da Revolução Industrial, em torno de 1800, para englobar todas as transformações que a humanidade já provocou no ambiente terrestre.
Microplásticos ao mar
Zalasiewicz e Waters convidaram Juliana para participar do Grupo de Trabalho do Antropoceno depois de lerem uma revisão que ela e a oceanógrafa Mônica Costa, da Universidade Federal de Pernambuco, publicaram em 2014 na Environmental Pollution sobre o acúmulo de microplásticos nos oceanos. Microplásticos são fragmentos com menos de 5 mm, em geral invisíveis a olho nu quando flutuam nos oceanos ou estão misturados na lama ou na areia. “Eles queriam saber se poderiam usar os microplásticos como um marcador geológico para o Antropoceno”, conta a pesquisadora, que já coletou o material na superfície do mar em torno de todas as grandes ilhas oceânicas brasileiras, como Fernando de Noronha e Trindade. Com mais 16 membros do grupo, ela realizou um trabalho de revisão publicado em janeiro naAnthropocene resumindo tudo o que se sabe sobre o caminho que os plásticos percorrem pelo planeta. No artigo, os pesquisadores enfatizam que esse tipo de material tem um elevado potencial de ser preservado nos sedimentos marinhos.
A origem dos microplásticos encontrados no mar é variada. Os chamados pellets, esferas do tamanho de uma lentilha, são usados como matéria-prima para fabricar objetos plásticos maiores. Outros resultam da degradação no ambiente de peças maiores. Os microplásticos mais abundantes, porém, são as fibras com 2 a 3 mm de comprimento por 0,1 mm de espessura que compõem o filtro dos cigarros ou se destacam de tecidos sintéticos durante a lavagem. De 1950 para cá, a produção mundial de plástico passou de 2 milhões de toneladas para 300 milhões de toneladas por ano. Estima-se que o total de plástico já produzido (algo da ordem de 5 bilhões de toneladas) seja suficiente para embrulhar o planeta em filme plástico algumas vezes.
Descartados em lixões, os materiais plásticos chegam aos oceanos e às regiões costeiras. Um estudo coordenado pelo biólogo Alexander Turra, do IO-USP, indicou anos atrás que há 10 vezes mais partículas de microplástico enterradas na areia de uma praia do que na sua superfície. “Antes de nosso estudo, as pessoas subestimavam a quantidade de plástico na areia”, diz Turra. Como a tendência do plástico é boiar, os pesquisadores supunham que os microplásticos permanecessem sempre sobre a areia. Turra e seus colegas, porém, os encontraram enterrados a até 2 metros de profundidade em quatro praias do litoral paulista (ver Pesquisa Fapesp nº 219). Desde então a equipe confirmou o fenômeno em mais 13 praias. Pela distribuição das partículas, Turra suspeita que os microplásticos sejam enterrados pela força de ocasionais tempestades marítimas. Outra parte do plástico produzido e descartado está flutuando nos oceanos. E há, ainda, outro destino: o fundo do mar.
Fósseis plásticos
Embora flutuem no início, os pedaços de plástico (grandes ou pequenos) que permanecem por muito tempo na água salgada acabam colonizados por microrganismos e afundam. Também podem ser engolidos por organismos maiores, de microscópicos zooplânctons a peixes, e submergir com suas fezes ou carcaças. Expedições já encontraram plásticos em diferentes profundidades no relevo submarino. Robôs já fotografaram garrafas, sacolas e redes de pesca em cânions submarinos ao redor da Europa e, em 2015, pesquisadores encontraram microplásticos a mais de 5 quilômetros de profundidade sobre o sedimento da fossa de Karil-Kamchatka, no oceano Pacífico. Testemunhos de sedimentos marinhos indicam que há fibras plásticas por todo o assoalho oceânico.
Zalasiewicz é especialista em microfósseis de 500 milhões de anos de idade, entre eles, os graptólitos, cuja estrutura era composta de moléculas orgânicas com estrutura semelhante à dos plásticos. Se esses microrganismos deixaram registros fossilizados, Zalasiewicz suspeita que o plástico depositado no fundo do mar, especialmente aquele presente no sedimento de cânions submarinos próximos às bordas das plataformas continentais, também tem grande chance de ser preservado por milhares de anos e, quem sabe, um dia intrigar futuros paleontólogos que encontrarem garrafas PET, CDs e bitucas de cigarro fossilizados.
Artigos científicos
ZALASIEWICZ, J. et al. The geological cycle of plastics and their use as a stratigraphic indicator of the Anthropocene. Anthropocene. 18 jan. 2016.
TURRA, A. et al. Three-dimensional distribution of plastic pellets in sandy beaches: Shifting paradigms. Scientific Reports. 27 mar. 2014.
IVAR DO SUL, J. A. e COSTA, M. F. The present and future of microplastic pollution in the marine environment. Environmental Pollution. fev. 2014.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp - Ed. 243
Comentários