A determinação social da saúde e da doença
“Tão importante quanto conhecer a doença que o homem tem, é conhecer o homem que tem a doença”. Esse conhecido aforismo, de autoria do médico canadense Willian Osler, um dos pais da moderna medicina clínica, que atuou na virada do século 19 para o século 20, resume a saúde na sua dimensão coletiva e social.
As doenças e as condições de saúde dos seres humanos só podem ser completamente entendidas quando os indivíduos são observados no contexto social, econômico e cultural em que vivem. Desde a Pré-História, o homem tem se empenhado em viver mais e melhor. E, ao longo dos tempos, os problemas de saúde, as explicações para as doenças, os tratamentos e as formas de prevenção foram se modificando. Enquanto até o século 20 predominavam as doenças transmissíveis, atualmente são os problemas do envelhecimento, de natureza crônica, que mais afetam as pessoas: os diferentes tipos de câncer e as doenças cardiocirculatórias, psiquiátricas e neurológicas, como a depressão e o Alzheimer, além dos homicídios, suicídios e acidentes.
Para nós, que vivemos no século 21, é difícil imaginar outras explicações para as doenças, diferentes daquelas a que estamos acostumados sob a ótica científica: microrganismos causando doenças transmissíveis e fatores de risco, como obesidade, tabagismo, sedentarismo, hipertensão arterial e diabetes, entre outros, na origem das complicações do envelhecimento. No entanto, a forma como as doenças e as epidemias foram abordadas ao longo da História sempre foi definida pelas concepções a respeito das origens dos problemas de saúde, ou seja, a causa determina o tratamento.
Na Pré-História e na Antiguidade, as explicações para a doença eram de natureza mágico-religiosa, compatíveis com o cotidiano daquelas sociedades. As pessoas morriam por ataques de feras, em consequência de fraturas ou de doenças transmissíveis, problemas que eram tratados pelos xamãs. A concepção social achava que esses problemas eram provocados por espíritos malignos, introduzidos no corpo das pessoas por inimigos ou deuses irados. O tratamento consistia em retirar esses espíritos de dentro dos corpos por meio de danças, chás, aplicações de plantas ou de fumaça.
Oficina de ourives e carpinteiros da XVIII Dinastia egípcia em pleno trabalho
Na Antiguidade e na Idade Média, os problemas de saúde continuaram a ser explicados em termos mágicos e religiosos. O homem passou a viver em vilas e cidades, e as doenças infecciosas tornaram-se as grandes vilãs, passando a ocorrer na forma de epidemias, que eram resultado da ação divina, punindo os homens por seus pecados, ou da possessão demoníaca. A Medicina e a Farmácia eram campos de atuação unificados. Um mesmo profissional cuidava do diagnóstico e do tratamento, que combinava produtos fitoterápicos e outros elementos da natureza com a oração, a penitência e o arrependimento, na busca de auxílio celestial. Havia também a crença de que as doenças epidêmicas, como a peste e a varíola, entre outras, eram causadas pelos miasmas – estruturas mal definidas, frutos da geração espontânea a partir da matéria orgânica –, conceito que só foi eliminado a partir dos experimentos de Pasteur, no século 19.
Mudanças importantes nos padrões de adoecer e morrer aconteceram em 10 mil anos antes de Cristo, quando o homem dominou as técnicas da agricultura; e 4 mil anos a. C., quando aprendeu a criar animais, tornando sua vida muito mais confortável. Já não era necessário sair todos os dias para caçar e coletar vegetais para o sustento da família. Por outro lado, a vida sedentária nas aldeias e o convívio com outras espécies de animais, no mesmo ambiente, expôs a humanidade a uma série de microrganismos e novas doenças, das quais a gripe é exemplar. Combinando carga genética de cepas próprias de humanos, aves e suínos, a gripe é uma doença epidêmica inerente à urbanização, que vem acometendo a humanidade desde então.
Estalagem localizada na rua do Senado, Rio de Janeiro, em 1906.
As consequências da vida na cidade, sob condições insalubres,
também se manifestaram no Brasil
É do trabalho de cada indivíduo que vêm os recursos que garantem a sua sobrevivência. Mas é também do trabalho, realizado em condições insalubres, que decorrem muitos acidentes fatais e doenças sérias. Duas profissões que surgiram na Antiguidade são a de ourives e de lenhador. Cada uma delas envolvia riscos diferentes para a saúde de quem as exercia, gerando doença e morte. O lenhador estava sujeito a sofrer desgaste precoce das articulações dos cotovelos e ombros, pelo esforço no manuseio do machado. Já a profissão de ourives foi uma das primeiras a ser identificada pelos médicos do passado, milhares de anos antes de Cristo, como nociva para a saúde. Hoje sabemos que isso é decorrência da contaminação pelo vapor de mercúrio, utilizado quando o metal precioso é trabalhado.
Muitos séculos se passaram até que os médicos identificassem a relação entre o trabalho e as doenças. Na Renascença, com os avanços no conhecimento ocorridos nesse período, foram escritas as primeiras obras relacionando trabalho e doença. A mais conhecida de todas é As doenças dos trabalhadores, de autoria do médico italiano Bernardini Ramazzini, publicada em 1700, motivo pelo qual ele é considerado o pai da Medicina do Trabalho. Ramazzini observou, por exemplo, que os oleiros – artesãos que se dedicavam a produzir objetos de cerâmica – sofriam de feridas na boca e no nariz, de queda de dentes e tremores. Hoje sabemos que são problemas de saúde decorrentes do chumbo empregado no processo de produção das peças cerâmicas.
A grande urbanização dos séculos 19 e 20, com a migração maciça para as cidades, proporcionou mais conforto, opções de lazer e estudo. À medida que se desenvolveram grandes cidades em vários países da Europa e na América do Norte, as epidemias de doenças transmissíveis tornaram-se mais comuns e mais mortíferas. Cidades como Londres, Paris, Filadélfia, Chicago e Nova Iorque, com centenas de milhares de moradores vivendo aglomerados, sem saneamento básico adequado, passaram a perder milhares de vidas para o cólera, a varíola, o tifo, a febre amarela, a malária e a peste. Essas doenças, por sua vez, assumiram tal proporção na Europa do século 19, durante a Revolução Industrial, que os governos nacionais se viram forçados a criar mecanismos de proteção da população contra a insalubridade do meio urbano e dos excessos do trabalho, além de oferecer as primeiras ações públicas de cura individual, embrião dos sistemas nacionais de saúde atuais.
Com o transporte aéreo, em poucos anos novas doenças tornaram-se globais,
como a zika e a dengue
As consequências da vida na cidade, sob condições insalubres, também se manifestaram no final do Brasil Colônia, no Rio de Janeiro, que sofreu uma grande epidemia de tuberculose, nas primeiras décadas do século 19. Com a chegada da família real portuguesa, em 1808, tornou-se necessário acomodar na cidade milhares de membros da corte. Moradores do Rio de Janeiro foram despejados de suas casas, cedidas para os membros da realeza vindos de Lisboa. A população desalojada foi acomodada como era possível, amontoada nos porões de outros moradores da cidade. Como resultado, veio a epidemia de tuberculose, decorrente da piora nas condições de moradia da população, acomodada em ambientes escuros, com pouca iluminação e ventilação, próprios à proliferação do bacilo de Koch.
O século 19 foi também o momento da história em que as distâncias se encurtaram e o mundo ficou menor, com a expansão das ferrovias e da navegação entre os continentes, nos barcos a vapor. A consequência para a saúde pública foi que as doenças passaram a se espalhar rapidamente entre regiões e continentes, com os trens e os navios. Na segunda metade do século 20 e no século 21, com a globalização da economia e o barateamento do transporte aéreo, a difusão das doenças pelos continentes tornou-se mais rápida ainda. Em poucos anos, novas doenças tornaram-se globais, como a zika e a dengue.
Para entender as mudanças ao longo da História, é necessário lembrar que as formas de viver e morrer são determinadas por aspectos que fogem ao campo estrito da biologia. A vida nos vilarejos e cidades, os alimentos que ingerimos e o desgaste provocado pelo trabalho são aspectos fundamentais para explicar a saúde e a doença nas sociedades. Mudanças culturais, sociais e econômicas têm um papel fundamental na definição da saúde humana, avançando além das ciências da saúde, influenciando a vida e a morte da população no planeta. Essas mudanças e os avanços tecnológicos frequentemente trazem consequências boas e más para a saúde das sociedades humanas. Um bônus quase sempre é correspondido por um ônus.
*Rodolpho Telarolli Junior é médico, professor adjunto de Saúde Pública da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp e autor de Saúde e Sociedade – A determinação social da saúde e da doença, Editora Moderna.
**BAINES, J. Deuses, templos e faraós: atlas cultural do Antigo Egito. Tradução de Francisco Manhães, Maria Julia Braga, Michael Teixeira, Carlos Nougué. Barcelona: Ed. Folio, 2008. p 194.
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