A doença como metáfora

A doença como metáfora


Jefferson Luis Ribas de Oliveira*

Livro da escritora norte-americana Susan Sontag
completa quarenta anos, ocupando um lugar de destaque na reflexão
sobre o sentido da doença e suas estigmatizações por meio da linguagem


Edvard Munch, A menina doente (1886). A menina era irmã de Munch
 e morreu de tuberculose, como sua mãe

O livro Doença como metáfora, da escritora norte-americana Susan Sontag, completa quarenta anos em 2018. Mesmo após quatro décadas, o ensaio ocupa um lugar de destaque na reflexão sobre o sentido da doença e suas estigmatizações por meio da linguagem.
Sontag cursou Filosofia na Universidade de Chicago e fez pós-graduação em Harvard, ambas nos Estados Unidos. Sua carreira intelec­tual abrange uma grande quantidade de obras, incluindo ficção, não-ficção, ensaios e diários, dentre as quais algumas das mais conhecidas são: Diante da dor dos outros; Contra a interpretação; Sobre fotografia; e Doença como metáfora.
Em 1976, a autora descobriu que tinha um câncer. Intelectual vivendo em Nova York, tinha acesso ao que havia de mais moderno, na época, no tratamento da doença.
 Mesmo assim, sentiu que estava vivendo os últimos dias de sua vida. Num torpor 
criativo, escreveu Doença como metáfora (Illness as metaphor), publicado dois anos depois.
O câncer era, ainda, sinônimo de morte. A escritora começou, então, a refletir sobre o poder da linguagem e sobre como um jogo de palavras, perverso e quase naturalizado tornava determinadas doenças, durante o curso da História, sinônimos da presença do Mal no mundo. Concluiu que elas se tornavam signos para identificar aspectos vistos
 como negativos, tanto individuais como sociais, ou em outras palavras, tornavam-se metáforas para descrever distúrbios, quer fossem políticos ou de outra natureza.
É comum, por exemplo, ouvirmos expressões como “isso é o câncer do sistema” ou “a corrupção é o câncer do Brasil”. É exatamente esse tipo de linguagem – em que uma doença acaba significando algo entendido como um mal que está muito além do escopo médico –, usada muitas vezes de forma naturalizada em nosso dia a dia, que Susan
 Sontag usa como objeto de reflexão em Doença como metáfora. Em seu ensaio, a autora analisa, de forma particular, duas doenças, a tuberculose e o câncer, e como se construiu toda uma teia de significados ao redor delas.

Sontag: carreira intelectual abrange uma grande quantidade de obras

A tuberculose, entre fins do século 18 e em todo o 19, foi vista, muitas vezes, como a doença dos sensíveis, dos apaixonados, daqueles que aspiravam a um amor sem limites. Muitos dos artistas-ícone do Romantismo foram atingidos por esse mal. Nas metáforas usadas durante esses séculos, tuberculose e paixão pareciam andar de mãos dadas. Embora nos registros oficiais a tuberculose fosse uma enfermidade muito mais ligada
 à classe trabalhadora, que vivia e trabalhava em locais profundamente insalubres, a enfermidade ganhou, no imaginário, contornos quase líricos, etéreos e sentimentais.
Já o câncer, não. Nada de sentimentalismo. Segundo Sontag, coube a essa enfermidade, desde o princípio, as metáforas mais lúgubres, mais tenebrosas. Metáforas de invasão, 
de ataque, espalharam-se pela literatura, por tratados médicos e por ensaios filosóficos. 
A ideia de um mal que surge dentro do corpo e que, se não tratado a tempo e adequadamente, espalha-se por tudo, destruindo todos os outros tecidos, tornou-se um símbolo linguístico para definir qualquer tipo de calamidade social, revolta política ou estado visto como “antinatural”.

Castro Alves, um dos poetas que tiveram tuberculose; involutariamente, 
ajudou a dar à enfermidade contornos quase líricos e sentimentais

Se a tuberculose, metaforicamente, possuía um estereótipo, a da pessoa sensível, 
esquálida e pálida, o câncer também possuía seu “tipo ideal” – até à época em que 
Sontag escreveu seu ensaio: a pessoa que parecia não possuir força de viver,
 reprimida  em seus sentimentos, incapaz de expressar seu eu interior. Por isso, o 
objetivo da escritora era que essas comparações e estereótipos fossem repensados e abolidos.

Acima: série artística do francês Olivier Terral com pacientes oncológicos,
 visando mostrá-los saudáveis e cheios de vida; no meio: obra do artista e ativista
 norte-americano Keith Haring, portador do HIV, morto em 1990 em
 decorrência de complicações  da doença; abaixo: obra do médico radiologista e
 artista francês Rodolphe von Gombergh, da série Virtual life art   

Sontag conhecia o poder que as palavras possuem na sociedade. Como uma pessoa 
que estava lutando contra um câncer, sabia o quanto o nome da doença provocava 
uma estigmatização indevida, tanto para a enfermidade em si, quanto para os doentes. 
A ensaísta refletiu sobre como a ideia de invasão era pensada quando se falava sobre o câncer (invasão do corpo, métodos invasivos) e o quanto isso prejudicava os doentes, 
pois esses interpretavam que estavam carregando a morte em seus corpos, e não
 apenas enfrentando uma doença, o que seria o mais realista pensar.
Como demonstra a escritora, o câncer foi, pouco a pouco, ocupando o lugar da 
tuberculose na economia das metáforas, porém, sem o perfil romantizado.
Passados tantos anos, Doença como metáfora ainda é uma reflexão relevante sobre os significados simbólicos que damos para a palavra “doença”, sendo uma das primeiras obras a refletir sobre o impacto que a linguagem produz na (re)significação de determinadas enfermidades. Tornando-as um mal muito maior do que são na 
realidade,  a linguagem acaba incentivando um imaginário que, na maioria das
 vezes, pouco condiz com a vida real. Enfermidades como a tuberculose e o câncer acabaram se tornando estigmas. De forma consciente ou inconsciente, seus doentes sentiam que carregavam  algo estranho e inimaginável dentro de seus corpos.
A doença é uma metáfora que constrói uma subjetividade e separa os sadios dos
 doentes. Como relata Sontag em determinado momento do livro, “os sentimentos 
sobre o mal são projetados numa doença. E a doença (tão enriquecida de sentidos) é projetada sobre o mundo”.
O livro tem sua importância estabelecida até hoje. Mas o câncer e a tuberculose, 
embora sejam enfermidades que ainda assustam, como é o caso da primeira, já não
 são vistas  com toda a significação e o peso que tinham em décadas passadas.
Dez anos depois, Susan Sontag escreveu outro pequeno ensaio, Aids e suas metáforas, analisando como as significações negativas, que antes eram usadas para descrever o câncer, se voltaram para a Aids.
Ler Doença como metáfora é entender um pouco melhor o imaginário que se
 construiu,  e se constrói até hoje, sobre as enfermidades. Um livro acessível e 
combativo, que nos faz refletir sobre o uso de nossas palavras e sua banalização no dia
 a dia.

*Historiador da Casa da Memória de São Carlos, Santa Catarina; mestre em
 História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
Fonte: Revista Ser Médico - Edição 82

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