O legado do Projeto Genoma FAPESP alcança todas as áreas das ciências da vida, avaliam cientistas
Karina Toledo | Agência FAPESP – “Tudo começou em 1997. Eu disse ao Fernando Reinach que nós precisávamos fazer algo grande na área de biotecnologia. Em pleno feriado de 1º de maio ele veio com a ideia: sequenciar o genoma de um organismo de relevância agrícola. Fiquei fascinado”, lembrou José Fernando Perez, que ocupava o cargo de diretor científico quando teve início o Projeto Genoma FAPESP.
O sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, responsável pela clorose variegada dos citros, doença também conhecida como amarelinho, resultou num artigo assinado por 119 pesquisadores paulistas, que foi capa da edição 406 da Nature de 13 de julho de 2000 e mereceu da revista um editorial: “Como primeira sequência pública de um patógeno de planta de vida livre, o artigo representa um marco científico significativo”, escreveram os editores.
Foi uma “iniciativa ousada”, que transformou a ciência paulista, destacou o presidente da FAPESP, Marco Antonio Zago, na abertura do Genome Workshop 20+2. O evento, realizado no início desta semana (dias 21 e 22 de novembro), integra as atividades comemorativas do 60º aniversário da Fundação e celebra os 22 anos da empreitada científica que inaugurou a pesquisa em genômica e a biologia molecular no Brasil.
Segundo relatou Perez em sua apresentação, não se tratava de um projeto sobre a Xylella e sim sobre capacity building, ou seja, a criação de uma infraestrutura física e humana que, depois de vencido esse primeiro desafio, pudesse levar adiante o sequenciamento de diversos outros organismos de interesse – seja para a saúde humana, animal ou de plantas.
"Mesmo antes de o genoma da Xylella ser publicado, muitos grupos se organizaram para investigar outros agentes infecciosos de plantas e animais. E muitas dessas pessoas estão hoje aqui”, comentou Zago, lembrando que a primeira iniciativa foi seguida pelo sequenciamento da cana-de-açúcar, da bactéria Xanthomonas citri (causadora do cancro cítrico) e dos genes expressos em amostras de tumores humanos, entre outros.
Visão de longo prazo
Vinte e dois anos depois é possível reconhecer o legado do Projeto Genoma FAPESP nos avanços da medicina personalizada, nas aplicações da genoterapia, no desenvolvimento de vacinas, nos estudos sobre a evolução filogenética da biodiversidade, entre outros.
O conhecimento adquirido naquela época, destacou Zago, foi essencial durante a pandemia de COVID-19, pois permitiu que cientistas brasileiros sequenciassem o SARS-CoV-2 em apenas 48 horas – enquanto outros países demoravam em média 15 dias. “O legado daquele período se estende para todos os campos de pesquisa das ciências da vida. E a segunda ou terceira geração de cientistas dessa linhagem estão agora manipulando o genoma para ajudar a tratar doenças e a produzir alimentos”, disse.
Em 2010, dez anos após a publicação do artigo que descreveu o genoma da fitobactéria, um novo editorial da Nature destacava: “Mais do que tudo, a Xylella demonstra os benefícios de mirar alto”.
“E eu reforço: se investirmos somente em projetos regulares e de baixo risco, os melhores resultados que vamos obter é a publicação de um artigo. Mas, se mirarmos alto, temos a chance de realmente mudar o panorama. E foi isso o que aconteceu naquele momento”, afirmou Zago na abertura do workshop.
Além de ousadia, foi preciso uma boa dose de coragem para levar adiante o plano. Como lembrou Perez, em 1997, a reação da comunidade acadêmica paulista à ideia de sequenciar o genoma da X. fastidiosa foi heterogênea: parte apoiou com entusiasmo e parte considerou que o projeto não fazia sentido. “Eles me perguntavam o que eu ia fazer com o genoma da Xylella após o sequenciamento. Temiam que eu gastasse todo o dinheiro da FAPESP nesse empreendimento. A geração mais velha de pesquisadores se afastou”, contou.
E o custo de conduzir o primeiro sequenciamento genômico de um fitopatógeno da história – US$ 12 milhões da FAPESP e mais US$ 400 mil da Fundecitrus, o maior valor até então destinado a um projeto científico no Brasil – era algo que de fato preocupava Perez. Ele buscou aconselhamento internacional, recorrendo aos britânicos Steve Oliver (Universidade de Manchester) e John Sgouros (Imperial Cancer Research Foundation), além de André Goffeau (Universidade Católica de Louvain, da Bélgica). “Eles avaliaram se tratar de uma grande ideia. E isso me tranquilizou”, disse o então diretor científico da FAPESP, que hoje dirige uma empresa de biotecnologia, a Recepta Biopharma.
Uma chamada de propostas foi então lançada e 35 laboratórios do Estado de São Paulo foram selecionados para compor a rede Onsa (sigla em inglês para Organização Virtual para Sequenciamento de Nucleotídeos), que reunia mais de 190 pesquisadores.
Reinach, também presente no Genome Workshop 20+2, liderava um dos laboratórios selecionados no edital e classificou a experiência como “fantástica”. “Foi um dos melhores períodos da minha vida”, afirmou.
O biólogo, que hoje atua como gestor do Fundo Pitanga e investe em pequenas empresas inovadoras, disse ter a impressão de que, atualmente, o ânimo de correr riscos e desenvolver projetos realmente ousados e desafiadores arrefeceu na comunidade científica brasileira.
Ainda na abertura do evento, o atual diretor científico da FAPESP, Luiz Eugênio Mello, destacou a “natureza mítica” do Projeto Genoma FAPESP, que envolve personagens com histórias de superação, trama com uma sequência de sucessos e fracassos, grandes conquistas e impactos duradouros. “A FAPESP apostou numa visão de longo prazo. Visou não apenas sequenciar uma bactéria em particular, mas também – e talvez principalmente – criar uma infraestrutura material e humana complexa e potente na área de genômica, cuja fertilidade foi evidenciada nas décadas seguintes”, afirmou Mello, parabenizando as lideranças científicas que, na época, “não se dobraram a visões de mundo imediatistas”.
A bióloga Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, pesquisadora do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), contou em sua apresentação que o Projeto Genoma FAPESP serviu de modelo e inspiração para a criação da Rede Brasileira de Genômica no ano 2000.
“O modelo implantado em São Paulo nós replicamos em todo o país. Usamos a mesma metodologia e espalhamos a fantástica experiência em 25 laboratórios de Norte a Sul. Então agradecemos muito à FAPESP por conduzir esse projeto e às lideranças do Ministério da Ciência e do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] da época por não criar nada diferente e apenas replicar essa experiência – o que colocou o Brasil em uma boa posição na pesquisa em genômica atualmente”, afirmou Vasconcelos.
Segundo dados apresentados pela pesquisadora do LNCC, o Brasil é líder em publicações na área entre os países da América Latina e é a única nação do continente que figura entre os top 30 países do mundo que mais publicam estudos sobre genômica.
Mesas temáticas
A primeira mesa do evento foi dedicada à genômica de patógenos e foi moderada por Marie-Anne Van Sluys, professora da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Coordenação Adjunta de Programas Especiais e Colaborações em Pesquisa da FAPESP. Além de Perez, participaram como palestrantes Alessandra Alves de Souza (Instituto Agronômico), Jorge Elias Kalil Filho (USP), João Marcelo Pereira Alves (USP) e Anna Childers (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos).
Alves de Souza, que ainda era estudante de mestrado quando o sequenciamento da Xylella teve início, falou sobre como a participação no projeto ajudou a moldar sua carreira e como os resultados obtidos transformaram o Brasil em referência na área.
“Hoje o amarelinho não é mais um problema para a produção de frutas cítricas em São Paulo, mas a Xylella ataca várias outras culturas [ao todo infecta 350 espécies vegetais]. Tem sido um grande problema para a produção de azeitonas no sul da Itália, na região de Puglia”, sublinhou a pesquisadora, que participa de um projeto voltado a resolver o problema em parceria com cientistas italianos.
Kalil Filho descreveu em sua palestra como evoluiu durante a pandemia de COVID-19 a capacidade brasileira de fazer o monitoramento genômico de um patógeno. “No começo, a tecnologia estava aqui, mas faltava o investimento [necessário para sequenciar com celeridade um grande número de genomas do SARS-CoV-2 de modo a detectar o surgimento de variantes virais]”, disse. “Não tivemos chance de pegar a variante gama [que possivelmente surgiu em Manaus no fim de 2020], ela foi detectada no Japão.”
O salto na capacidade de sequenciamento começou em maio de 2021, informou o pesquisador, graças à estruturação da Rede Corona-ômica pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o apoio do Instituto Todos pela Saúde (do banco Itaú) e a parceria com laboratórios privados. Hoje o país já depositou cerca de 183 mil genomas completos do novo coronavírus no repositório internacional Gisaid – um número absurdamente maior que o de outros patógenos relevantes para a saúde pública brasileira, como o vírus da dengue (281 genomas sequenciados), febre amarela (195) ou zika (76).
Pereira Alves falou sobre sua principal linha de pesquisa, relacionada com a genômica de bactérias e de protozoários causadores de doenças negligenciadas como, por exemplo, os tripanossomatídeos.
A segunda mesa do evento foi dedicada à genômica agroambiental, com moderação do professor da USP Luis Eduardo Aranha Camargo. Um dos palestrantes foi Paulo Arruda, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que dirige o Centro de Pesquisa em Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas (GCCRC) – um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) apoiado por FAPESP e Embrapa. Ele descreveu estudos direcionados à descoberta de genes que podem tornar as plantas mais resistentes à seca e outros fatores de estresse. Esses genes podem estar na própria planta ou, muitas vezes, na comunidade de microrganismos em seu entorno.
João Carlos Setubal, professor do Instituto de Química da USP, apresentou estudos que tem conduzido nos últimos oito anos com a microbiota existente em zoológicos. Em um trabalho recente, seu grupo identificou microrganismos que produzem enzimas com grande potencial para degradar a lignina – composto que confere rigidez às plantas – e, portanto, de grande interesse biotecnológico.
Claudia Vitorello, professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), apresentou seus estudos sobre patógenos da cana-de-açúcar, com destaque para o fungo Sporisorium scitamineum, causador de uma doença conhecida como carvão da cana.
E finalizando o primeiro dia do workshop, o pesquisador do Wellcome Sanger Institute Mark Blaxter, do Reino Unido, apresentou o projeto Tree of Life (Árvore da Vida), que busca compreender a evolução por meio do sequenciamento de organismos eucariotos (cujas células possuem núcleo).
“Estamos vivendo uma crise biológica e as espécies selvagens estão em risco. Um dos grandes desafios é a mudança climática. Se falharmos em preservar a biodiversidade que nos sustenta, falhamos em preservar a nós mesmos, pois a nossa sociedade depende dos serviços ecossistêmicos prestados por todas as espécies com quem dividimos o planeta”, ressaltou Blaxter. “Esperamos que, por meio do sequenciamento genômico, possamos ajudar a mitigar essa crise, a achar formas de reverter o declínio de espécies e oferecer dados que fomentem novas bioindústrias menos destrutivas para o planeta.”
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