Os vírus latentes são o obstáculo para a cura da aids

Entrevista:

Por Concília Ortona* e Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo**
Robert Siliciano, o cientista norte-americano que identificou o problema que impede a eliminação completa do HIV, mesmo com o uso da terapia antirretroviral – abrindo caminho para novos estudos sobre como superá-lo –, fala, com exclusividade, à Ser Médico
cientista Robert F. Siliciano, professor da Johns Hopkins University e pesquisador do Howard Hughes Medical Institute, ambos no Estado de Maryland, EUA, desenvolve um trabalho essencial na luta contra o vírus HIV. Entre outros feitos, em 1995, foi o primeiro a demonstrar a existência de células contendo vírus latentes em pacientes infectados – e que essas persistem mesmo com o uso terapia antirretroviral (TARV; sigla em inglês, HAART).

Na prática, a descoberta foi “desanimadora para um grande contingente de colegas que acreditavam estar perto da cura“, explicou Siliciano, em entrevista exclusiva concedida por videoconferência à Ser Médico. Em resumo, como o vírus permanece “adormecido” e integrado ao DNA de células infectadas, potencialmente pode recrudescer caso os antirretrovirais sejam interrompidos. Era um novo “período escuro”, após a eclosão de uma epidemia assustadora, nos anos de 1980.

O entusiasmo, em parte, foi recuperado, com a cronificação da doença com TARV entre
pacientes aderentes, e com o anúncio do primeiro caso de cura, 12 anos atrás, envolvendo transplante de medula óssea. Havia, enfim, “novas rotas a serem seguidas”, opinou o professor. “Identificamos o problema que impede a eliminação completa do vírus, abrindo caminho para novos estudos sobre como superá-lo”, comentou.

Formado em Química, na Princeton University, e, em Medicina e Imunologia (PhD), pela Johns Hopkins University, foi na Harvard University onde recebeu treinamento específico quanto à reação dos Linfócitos T Auxiliares (helper) CD4+ ao se depararem com antígenos. A notoriedade alcançada por seu grupo foi tanta, que Siliciano chegou a ser apontado “como o mais promissor cientista à cura da aids”, por um dos descobridores do HIV, Robert Gallo,durante entrevista concedida ao Cremesp, em 2014. Além disso, seu nome havia sido citado mais de 38 mil vezes no Google Acadêmico, até o fechamento desta edição.
Filho de médico e de professora de Química, é casado com Janet Siliciano, também cientista da Johns Hopkins, que o acompanha nas pesquisas sobre a latência do vírus HIV há cerca de 20 anos, e é com quem compartilha a orientação de dez jovens pesquisadores. “A gente se diverte muito conversando sobre Ciência”, comemora. O interesse do professor ultrapassa os contornos do seu próprio laboratório. “É muito importante tornar as drogas antirretrovirais disponíveis a todos os que necessitam”, enfatizou.
Ser Médico – Quando entrevistamos Robert Gallo, em 2014, ele mencionou o senhor e seu laboratório como “os mais promissores para a efetiva cura da aids”. Em que ponto sua pesquisa é tão promissora?
Robert Siliciano – Conseguimos identificar a barreira para a eliminaçã do vírus, o que significa que sabemos qual é o problema e o descrevemos. Imagino que conhecer o problema seja o primeiro passo para ultrapassarmos os obstáculos e chegarmos à cura – alvo de intenso esforço da comunidade científica internacional. Mas se me perguntarem se tenho alguma ideia sobre quando vai acontecer, claramente não tenho. Anos atrás, a Foundation for AIDS Research (amfAR) previu a cura da aids em 2020 – ou seja, de agora até alguns meses – e estava errada. Por isso, não gosto de fazer previsões.
Felizmente, sabe-se que a dificuldade em se eliminar todos os vírus das células infectadas não tem nenhuma relação com a eficiência das drogas disponíveis. Os antirretrovirais fazem o seu papel conforme o esperado, interrompendo por completo a replicação do HIV em pacientes aderentes ao esquema terapêutico. Ainda assim, teremos uma pequena população de células carregando o vírus latente. Nelas, o HIV não está se replicando e, portanto, não afeta o sistema imunológico, e não é atingido pelas drogas antirretrovirais. Isso faz com que permaneça lá por um longo período mesmo se o paciente tomar seus remédios de forma correta. Como o vírus se integra ao DNA das células infectadas, carrega o potencial de voltar a se reproduzir no futuro e de começar a agir, caso o tratamento seja interrompido.
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Robert Siliciano foi apontado como o mais promissor cientista à cura da aids
Ser – O cientista que descobrir a maneira de ultrapassar esse problema envolvendo os vírus latentes será o responsável pela cura da aids?
Siliciano – Correto. Se as células T CD4 auxiliares infectadas de maneira latente se constituem no principal obstáculo para a cura, se pudermos eliminar esse reservatório de vírus, o paciente vai ser curado. Existem informações de que dois pacientes se livraram do HIV, porém ambos receberam transplantes de medula óssea que causaram imunossupressão massiva, eliminando totalmente os reservatórios. A partir de então, o sistema imunológico foi reconstruído praticamente do zero, acabando com cada cópia do HIV presente no organismo, inclusive as resistentes. O exemplo dá ideia de o quão difícil é superar tal latência, pois requer transplante de medula óssea, procedimento bastante perigoso ao paciente e que exige uma série de circunstâncias específicas, como doador com mutação genética que confere resistência natural ao HIV. Simplesmente não é para todo mundo; temos de encontrar outro jeito.

"A dificuldade em se eliminar todos os vírus das células infectadas não tem nenhuma relação com a eficiência das drogas disponíveis"

Ser – Estamos próximos de implementar no contexto clínico terapias capazes de eliminar os vírus latentes – ou isso vai ficar restrito a casos isolados?
Siliciano – Não acho que estejamos perto, porque devemos fazer duas coisas. Em primeiro lugar, precisaríamos “reativar” todos os vírus latentes de forma simultânea, permitindo que os antirretrovirais e o sistema imunológico consigam matar as células infectadas. Em segundo, nos assegurarmos a respeito da possibilidade de o sistema imunológico realizar essa tarefa. Como trabalharmos nessas duas frentes é que é a questão. Seria muito arriscado reativar um vírus letal em paciente que está conseguindo controlar o HIV com medicações. Além disso, seria necessário estabelecer as formas de o sistema imunológico conseguir reparar células comprometidas. Houve ensaios clínicos cujo foco eram as drogas as quais achávamos ser capazes de atingir os vírus latentes, mas estas não funcionaram. De fato, a maioria desses estudos simplesmente não levou a resultados e, na atual conjuntura, nossa equipe não vislumbra algo promissor.
Ser – Foi o caso da droga proposta pelo seu grupo em 2009, a 5HN, destinada à reversão da latência?
Siliciano – O estudo do 5HN (5-hidroxinaftaleno- 1,4-diona) é antigo e chegou a ser publicado no Journal of Clinical Investigation. Ouso dizer que foi efetivo in vitro, mas rápido percebemos que essa droga era muito, muito, tóxica e, portanto, não poderia ser usada em pacientes. Em outras ocasiões, a comunidade científica acreditou ter encontrado drogas capazes de deter o HIV, mas o índice de toxicidade, bem como o fato de as células responderem de maneira diversa a diferentes estressores químicos, tornaram difícil dizer se elas realmente funcionariam.
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O professor da Johns Hopkins University, Robert Siliciano, em seu laboratório
Ser  Além de drogas capazes de reverter a latência do HIV, terapias genéticas ou técnicas de engenharia genética, como o CRISPR, podem ser um caminho
para o fim da aids?

Siliciano – Também há muitos impedimentos ao uso de terapia genética contra o HIV. O principal é que precisaríamos direcioná-la a todas as células T CD4, já que não sabemos quais estão infectadas. Teríamos que atacar todas. Ademais, existem vários riscos, em potencial, ao paciente, se introduzirmos algo capaz de mudar o DNA de cada célula. Não sei se isso funcionará no futuro e, nesse campo, também existe um longo caminho a percorrer. Antes, seria importante tornar as drogas antirretrovirais disponíveis a quem necessita. Nesse sentido, vários países estão empenhando esforços para ajudar as regiões nas quais o acesso às drogas é limitado. Na África, por exemplo, a quantidade de pessoas em tratamento antirretroviral tem aumentado, e precisamos manter as iniciativas a esse respeito.
Ser – E o uso de vacinas? Há promessas no âmbito preventivo e curativo?
Siliciano – A busca por uma vacina é outra frente importante contra a epidemia. Mas, em prevenção, o que se usa hoje nos EUA, e creio também no Brasil, são as profilaxias pré e pós-exposição, ou seja, pessoas submetidas a situações de alto risco para o vírus, ou circunstancialmente expostas ao HIV, recebem prescrição de antirretrovirais a serem tomados todos os dias, ou após a exposição. Realmente funciona. Desenvolver um imunizante eficaz é outro grande desafio, porque o vírus sofre mutações rapidamente. Se para se prevenir influenza, vírus que também apresenta rápidas mutações, são necessárias adaptações e aplicações anuais da vacina, imagine o HIV, cujas mutações são também muito frequentes. Encontrar uma vacina direcionada a todas as formas de HIV presentes no mundo também é complicado. Até hoje ninguém conseguiu neutralizar todas as cepas, induzir reação a todos os tipos do vírus, não temos como fazer isso. Interessante como os dois campos andam juntos: por um lado, seria necessário desenvolver uma vacina para fortalecer o sistema imunológico contra o invasor, como estão tentando alguns laboratórios que atuam no âmbito preventivo; por outro, é preciso eliminar as células infectadas, no curativo.
Ser – Como se envolveu no universo da aids? Houve algum momento em que se sentiu desencorajado sobre a possibilidade de deter o HIV?
Siliciano – Estava estudando Medicina quando o HIV foi descoberto e a epidemia eclodiu, nos anos 1980. O interesse pela pesquisa no HIV aumentou mais tarde, durante o PhD em Imunologia. Acabei me dedicando ao assunto em vários sentidos, primeiro em vacinas, e, depois, em pesquisas sobre detecção do vírus em pacientes. Era 1997, época em que os antirretrovirais foram lançados e se mostraram eficazes em diminuir a carga viral em níveis indetectáveis, levando a conjecturas sobre cura. O ânimo caiu por terra, em seguida, quando provamos que tais reservatórios do vírus poderiam persistir para sempre e, por isso, não seria possível alcançar todas as células infectadas. Foi um novo período escuro da epidemia e desanimador para um grande contingente de colegas que acreditavam estar perto da cura.
Até que 12 anos atrás foi divulgada a história do “Paciente de Berlim” (Timothy Ray Brown, submetido em 2007 a transplante de medula de doador com mutação específica ao HIV, livrando-se da aids e da leucemia, conforme divulgado, em 2009, na New England Journal of Medicine), e, depois, do “Paciente de Londres” (homem aparentemente curado, em 2019, após procedimento semelhante), indicando novas rotas a serem seguidas e que, por isso, deveríamos continuar a tentar. Passei a ver a hipótese de cura de uma maneira mais otimista.
Ser – Em que tipo de missão seu laboratório está engajado agora? Como é trabalhar com sua esposa, Janet Siliciano, e qual é a participação dela na equipe?
Siliciano –Dedicamos muitos anos à questão sobre o que impede de o vírus latente ser desativado e, assim, acabar com as células infectadas. Nesse sentido, recentemente, conseguimos descrever um jeito de mensurar o tamanho dos reservatórios latentes de uma maneira mais acurada, algo necessário para a resolução do problema. Faz cerca de 20 anos que trabalho com minha esposa, Janet, que colabora com suas pesquisas em biologia celular. Tem sido ótimo. Somos mentores de dez estudantes de Medicina, com quem compartilhamos as responsabilidades em torno do laboratório. Nos divertimos bastante conversando sobre Ciência com quem está ainda aprendendo.
Os alunos e os médicos jovens não têm como se lembrar do tempo em que a aids era uma doença terrível e uma sentença de morte para quem recebia o diagnóstico. Entretanto, espero que percebam os grandes avanços no campo, talvez um dos que mais se desenvolveram em Medicina, em relação ao número de vidas preservadas. Quem toma antirretroviral vive bem e quase tanto quanto a população sem o vírus, e isso é surpreendente. Só que os desafios continuam. No meu país, por exemplo, temos um grande problema com a adição de drogas, com níveis próximos de epidemia. Esse contingente fez com que o número de novas infecções não caísse tão rápido quando em épocas anteriores. Temos que continuar a nos empenhar.

BERLIM E LONDRES: DOIS CASOS DE CURA DA AIDS
Em sua entrevista, o virologista Robert Siliciano menciona dois casos sem precedentes, mas capazes de demonstrar que o HIV não é invencível: dois homens, afinal, eliminaram qualquer vestígio do vírus no sangue e nos reservatórios ocultos em tecidos linfoides e digestivos, além de na medula óssea.
Não foi um caminho fácil. Mais de uma década foi necessária para repetir, com o Paciente de Londres, o feito histórico que livrou da aids e da leucemia mieloide (LMA) o Paciente de Berlim, por meio de transplante de células-tronco de medula óssea de doador com mutação genética que confere resistência ao vírus.
Conforme reportagem do jornal The New York Times, entre um e outro houve tentativas fracassadas de cura em situações semelhantes, usando o mesmo método. Isso porque a carga viral voltou a subir, em média, nove meses depois da interrupção dos antirretrovirais, sendo que parcela significativa dos pacientes morreu de câncer.
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Timothy Ray Brown, o Paciente de Berlim
Cura na Alemanha
Ele ficou conhecido no meio científico como o Paciente de Berlim, mas isso se deve ao fato de o americano Timothy Ray Brown ter recebido o procedimento pioneiro contra o HIV e a LMA, em 2007, no Hospital Charité, na capital alemã, chegando à “cura esterilizante” de ambas as doenças – não há sinal delas no seu organismo.
Diagnosticado HIV+ em 1995, desde então Brown tomava antirretrovirais, mantendo-se estável até 2006, quando apresentou LMA. As condições gravíssimas e o insucesso de quimioterapia – que resultou em efeitos hepáticos graves e insuficiência renal motivaram a equipe médica, chefiada por Gero Hütter, a oferecer tratamento radical e transplante de medula óssea de doador com a mutação “delta 32” no receptor CCR5. Brown aceitou os riscos, em consentimento informado.

À época, já se sabia que a proteína CCR5, que se localiza na superfície de certas células imunológicas, é usada para que o HIV entre nas células, mas este não pode se prender à versão mutada. Isso significa que quem apresenta tal mutação – em sua maioria, descendente do norte da Europa – é imune ao vírus. Brown recebeu dois transplantes, em 2007 e em 2008, e passou por imunossupressão intensa, no intuito de reconstituir seu sistema imunológico. Sofreu graves complicações após o transplante, sendo colocado em coma induzido. Quase morreu. Porém, três meses depois os níveis de linfócitos CD4 voltaram a subir, e a carga viral caiu em níveis indetectáveis, segundo artigo publicado na New England Journal of Medicine, em 2009, pouco depois de o caso ser divulgado em 2008, em Boston, na Conferência sobre Retrovírus e Infecções Oportunistas.

Cura em Londres
A revelação sobre o segundo caso de cura ocorreu na mesma Conferência, só que na versão 2019, em Seattle, EUA.

Cautelosa , a equipe chefiada pelo virologista Ravindra Gupta, da Universidade College London (UCL), preferiu descrever o caso como “remissão em longo prazo”, da mesma forma que fez ao divulgar seus resultados em março deste ano, na Nature.

O paciente em questão, ao contrário de Brown, preferiu ocultar sua identidade. Portador de aids e linfoma de Hodkin, ele recebeu um transplante de medula óssea de um doador com mutação CCR5, em maio de 2016. Foram usados medicamentos imunossupressores, mas o tratamento foi bem menos intenso do que no primeiro caso, desmistificando a ideia de parte dos pesquisadores de que seria necessária uma experiência de “quase morte” para eliminar o HIV.

O Paciente de Londres parou de tomar drogas anti-HIV em setembro de 2017 e, da mesma forma que o de Berlim, mantinha-se sem sinais de recrudescimento do vírus.

Também em Seattle, houve referência a outro potencial caso de cura, o Paciente de Dusseldorf, Alemanha, submetido a transplante de medula. Três meses depois do procedimento, biópsias de tecido retirado dos linfonodos e intestino não mostravam sinais do HIV. (C.O.)
* Jornalista do Cremesp
** Coordenador da Assessoria de Comunicação do Cremesp
1: arquivo pessoal
Fonte: Revista Ser Médico - Ed. 89


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