Percepção musical em crianças pode predizer dificuldades de aprendizagem
Um teste capaz de medir o grau de percepção musical em crianças de 6 a 13 anos foi desenvolvido por um grupo que reúne cientistas brasileiros, canadenses, norte-americanos e britânicos.
Os resultados da pesquisa, apoiada pela FAPESP, foram divulgados em janeiro na revista Frontiers in Neuroscience.
“Nosso objetivo, no futuro, é tentar comprovar que essa ferramenta é eficaz para identificar crianças predispostas a apresentar dificuldades na aquisição da linguagem oral e escrita. Isso possibilitaria aos pais e professores realizar intervenções precoces”, contou Hugo Cogo Moreira, professor orientador da Pós-Graduação em Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do projeto.
Segundo o pesquisador, evidências da literatura científica sustentam a hipótese de que o grau de percepção musical da criança – isto é, a capacidade de perceber determinadas propriedades da música, como timbre, intensidade, melodia e ritmo – está correlacionado com sua habilidade para aprender a linguagem verbal, tanto oral como escrita.
“A música é uma forma de linguagem não verbal. E a linguagem verbal, por sua vez, tem componentes musicais. Envolve percepção de frequências diferentes de voz, entonação e padrão de métrica, entre outros fatores”, explicou Moreira.
A percepção musical, acrescentou o pesquisador, está diretamente ligada à consciência fonológica, que é a capacidade de segmentar o som das palavras nas suas menores partes – como nos exercícios que professores costumam fazer com crianças durante a alfabetização, nos quais se pede para manipular o som em sílabas (B + A = BA; C + A = CA; etc.).
“A consciência fonológica é uma habilidade básica que precede a leitura. Acredita-se em um efeito cascata: quanto maior a percepção musical, mais fácil seria perceber nuances nos sons e essa habilidade auxiliaria na apreensão de leitura de palavras isoladas. Logo, torna-se mais fácil desenvolver a leitura contextual, entender o que está escrito e isso impacta todo o desempenho acadêmico”, disse Moreira.
Na avaliação do pesquisador da Unifesp, a grande vantagem de usar a percepção musical como um preditor da habilidade de leitura e escrita é o fato de a percepção musical ser uma linguagem universal, que independe do idioma ou da cultura. A mesma metodologia, portanto, poderia ser aplicada em crianças de todo o mundo.
Fator-M
Insatisfeitos com os testes até então disponíveis para mensurar a percepção musical, o grupo coordenado por Moreira decidiu criar uma nova ferramenta capaz de avaliar a capacidade das crianças de notar variações em sete diferentes domínios musicais: timbre, métrica, escala, intensidade, contorno musical, duração e tom.
Para isso, foram produzidos e gravados diferentes e curtos excertos musicais em programas sofisticados de composição, com sons em alta qualidade e diferentes timbres musicais (inclusive sons ruidosos), abarcando a compreensão musical para além dos tradicionais sons do violino e piano disponíveis em outros testes.
Todos os estímulos sonoros são inéditos e foram compostos por Caio Giovaneti de Barros, aluno de doutorado do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-Unesp) e primeiro autor do artigo.
Organizados em pares, esses estímulos sonoros formam ao todo 80 tarefas que desafiam as crianças a descobrir se cada par musical é semelhante ou apresenta variação em algum dos sete domínios.
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“Os testes até então existentes usam diferentes combinações dos domínios musicais. Alguns incluem apenas três deles, como métrica, tom e ritmo. Outros misturam quatro ou cinco domínios. Mas, de maneira geral, a qualidade sonora dos estímulos musicais é ruim (arquivos MIDI). Além disso, muitos testes usam músicas conhecidas, como Parabéns a Você. Nós fizemos questão de desenvolver estímulos musicais completamente novos para que o histórico auditivo da criança não interferisse no resultado”, contou Moreira.
O teste foi aplicado em 1.006 crianças entre 6 e 13 anos, igualmente distribuídas entre o primeiro e o quinto ano do Ensino Fundamental e matriculadas em 14 escolas do Estado de São Paulo – sendo 38% delas privadas.
Em seguida, o grupo analisou os resultados por meio de um modelo estatístico conhecido como modelo bifatorial (ou modelo geral-específico), pelo qual um peso diferente é atribuído no final a cada um dos domínios avaliados.
“Para nossa surpresa, observamos que medir isoladamente cada um dos domínios nos diz muito pouco sobre a percepção musical de um indivíduo. Eles todos têm um peso muito pequeno em comparação a um fator geral que parece governar os demais. A esse fator geral nós chamamos Fator-M”, contou Moreira.
O pesquisador comparou o “Fator-M” identificado no estudo com o chamado “Fator-G”, um fator geral que governa o nível de inteligência de um indivíduo segundo a teoria proposta pelo pesquisador inglês Charles Spearman no início do século 20.
“Não adianta, portanto, a criança ter uma boa percepção de timbre ou uma boa percepção de métrica apenas. O que realmente indica se a percepção musical é boa ou não é o escore do Fator-M”, disse Moreira.
Entre as crianças analisadas, a grande maioria apresentou um escore mediano.
Gráfico mostra a distribuição do Fator-M na população estudada. A maioria tem níveis medianos. À esquerda, aqueles com percepção muito abaixo da média e, à direita, muito acima da média
Não houve diferença significativa no grau de percepção musical de meninos e de meninas, contrariando trabalhos que geralmente apontam vantagem para o sexo feminino em testes de linguagem verbal.
Crianças de escolas particulares apresentaram resultado ligeiramente superior ao de crianças de escolas públicas. Quando comparados indivíduos de diferentes idades, porém, não houve diferença. Segundo Moreira, isso sugere que o Fator-M não aumenta com a idade.
“Se a criança de 12 anos não tem, em média, um escore maior que a de 6, tudo indica que essa percepção musical é algo inato, que até pode ser estimulado, mas, em boa medida, já vem de fábrica. Mas, para termos certeza disso, seria preciso fazer um estudo de seguimento e acompanhar as mesmas crianças ao longo de seu desenvolvimento”, avaliou Moreira.
De acordo com o pesquisador, o passo seguinte da investigação é aplicar o teste em um outro grupo de crianças e tentar correlacionar o resultado do Fator-M ao desempenho do participante na escola em medidas de leitura e escrita.
Para ser usada como ferramenta preditora para crianças pré-escolares, porém, o teste teria de ser adaptado. “Com 80 tarefas, o teste é muito longo para crianças menores de 6 anos. Mas, se conseguirmos adaptá-lo e mostrar que é capaz de predizer dificuldades na aquisição da linguagem, torna-se possível realizar intervenções muito precoces, como aulas de musicalização, por exemplo”, afirmou.
O artigo “Assessing Music Perception in Young Children: Evidence for and Psychometric Features of the M-Factor” pode ser lido em:http://journal.frontiersin.org/article/10.3389/fnins.2017.00018/full.
Fonte: Agência Fapesp
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