O perigo das superbactérias
O perigo das superbactérias
Resistentes a antibióticos, usados de forma abusiva e inadequada, elas podem se tornar uma crise global, alerta a Organização Mundial de Saúde, que prepara um plano de ação em conjunto com a ONU
A partir da esquerda, bactérias Klebsiella pneumoniae, Pseudomonas aeruginosas e Staphylococcus aureus
Poderia a humanidade, em pleno século 21, tornar-se refém de uma bactéria? Essa é uma das maiores preocupações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de diversas entidades médicas nacionais e internacionais. De acordo com relatório divulgado pela OMS, no primeiro semestre de 2014, as bactérias multirresistentes a antibióticos deixaram de ser problemas regionais para se tornarem uma crise global. “A principal preocupação é a incapacidade de tratar doenças infecciosas comuns, que acometem milhões de indivíduos em todo o planeta”, destaca Carmem Lúcia Pessoa-Silva, chefe do programa antimicrobial da organização.
A resistência bacteriana é definida como a ausência de ação de um medicamento sobre um determinado microrganismo. “A resistência adquirida é um importante problema clínico e uma preocupação crescente, pois, além de grande poder de disseminação, está diretamente ligada ao uso abusivo e inadequado de antimicrobianos. A velocidade do aparecimento e da disseminação dessas bactérias é muito maior do que a capacidade da indústria farmacêutica em descobrir e sintetizar novos medicamentos para combatê-las”, explica Thaís Guimarães, presidente da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) do Instituto Central do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Fmusp), e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
O paciente colonizado ou infectado deve ser colocado em precaução de contato (higienização das mãos, uso de avental e luvas, e quarto privativo)
“Os hospitais devem estar preparados para detectar casos de bactérias resistentes por meio de métodos laboratoriais, e avisar rapidamente a CCIH, para que medidas de prevenção e controle possam ser adotadas. O paciente colonizado ou infectado deve ser colocado em ‘precaução de contato’ (higienização das mãos, uso de avental e luvas, e quarto privativo), para impedir transmissões cruzadas pelo contato direto ou indireto. O uso de materiais não críticos (termômetros, estetoscópios, esfigmomanômetro, comadres e papagaios) exclusivamente para esse paciente também faz parte das medidas a serem tomadas para prevenir a proliferação de casos comprovados”, explica Thaís.
Definição
Para a diretora médica do Serviço de Microbiologia da Divisão de Laboratório Central do complexo do Hospital das Clínicas da Fmusp, Flávia Rossi, alguns conceitos devem ser desmistificados, como, por exemplo, a denominação “superbactérias”, que se refere a bactérias resistentes a, no mínimo, dois grandes grupos de antibióticos (quinolonas, penicilina, carbapenem e macrolídeos, entre outros). “Temos de saber qual é essa ‘superbactéria’, porque esse é um nome genérico, e elas têm nome e sobrenome, pois são organismos diferentes. Se não sei quem é o meu inimigo, vou usar armas que podem ser excessivas ou, às vezes, deficientes”, explica.
“As pessoas se preocupam muito com o ambiente hospitalar, mas, apesar de ser uma preocupação necessária, temos de lembrar que o problema não é apenas esse. Começa na limpeza adequada, na lavagem das mãos, na proteção e na prevenção. Quando o médico prescreve um antibiótico, o paciente deve estar ciente de que é preciso tomá-lo até o final, e de que não pode interromper seu uso ao apresentar um quadro de melhora, permitindo à bactéria aprender a combater o medicamento”, destaca Flávia, que também é co-autora do livro Resistência Bacteriana – Interpretando o Antibiograma, e foi convidada, recentemente, a integrar o WHO Advisory Group on Integrated Surveillance of Antimicrobial Resistance, grupo para vigilância antimicrobial da OMS. “Em nosso organismo, possuímos bactérias boas e ruins, e devemos buscar o equilíbrio entre elas, pois, na verdade, as bactérias estão apenas se defendendo de um ataque de antibióticos, que também estão presentes na água e nos alimentos”, alerta a médica.
Fazer, constantemente, o antibiograma para saber qual é o antibiótico adequado para combater a doença é fundamental, e uma das informações principais nas situações hospitalares e nas infecções graves. “No Brasil, temos uma deficiência muito grande de laboratórios de microbiologia onde se faz esse tipo de exame”, lamenta Flávia.
Para Carmem Lúcia, é importante reduzir ao máximo todas as formas de uso inadequado dos antibióticos. “Isso requer uma ação conjunta de vários setores, como as várias esferas de governo, a população, os profissionais da saúde, a indústria farmacêutica e o setor agropecuário, entre outros”, assegura.
Plano de ação global
A OMS, em cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura e com a Organização Mundial de Saúde Animal (respectivamente, FAO e OIE, nas siglas em inglês), está elaborando um plano de ação global, que inclui também o setor farmacêutico. “A proposta está sendo elaborada com os países membros e os vários setores, visando promover ações integradas para uma estratégia eficaz de enfrentamento desse problema”, informa a chefe do programa antimicrobial da OMS.
“Um dos elementos dessa iniciativa é o incentivo à pesquisa para desenvolver novos instrumentos de prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças infecciosas”, conta Carmem Lúcia, enfatizando que o primeiro objetivo é evitar as infecções, sejam elas da comunidade ou associadas aos cuidados de saúde, como as hospitalares. “Se este primeiro passo falha, é preciso ter bons e acessíveis métodos diagnósticos, para permitir uma orientação terapêutica adequada, evitando assim o uso inadequado de antimicrobianos. E, finalmente, diante da emergência da resistência microbiana aos medicamentos existentes, novos métodos terapêuticos são necessários, como novos antibióticos, entre outros”, explica.
Durante a Assembleia Mundial da Saúde, em maio deste ano, foi aprovada, por unanimidade, uma resolução que estabelece o enfrentamento do problema de forma abrangente. “O importante é que tenhamos consciência de que o uso desnecessário de antimicrobianos causa dano não só para quem os toma, mas aos outros indivíduos e às futuras gerações. Todos nós devemos ter senso de responsabilidade. A boa notícia é que a solução está em nossas mãos, e o plano de ação global busca coordenar essa solução”, destaca Carmem Lúcia.
Fonte: Revista Ser Médico nº69
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